domingo, 30 de março de 2008

A CRISE DA MORALIDADE


INTRODUÇÃO

Não há dúvidas que os reflexos catastróficos da Queda estão presentes em toda a história humana. Em todas as épocas e em todos os lugares e culturas, o homem tem desfrutado do estranho prazer que provém da transgressão. Mesmo esse comportamento sendo inerente à natureza caída e, por disso, estendido a toda a humanidade, não há como negar que a sociedade atual tem usufruído do prazer da transgressão de forma exagerada. O homem está cada vez mais viciado pela quebra dos padrões. Na verdade, a própria Escritura assegura esse caráter pessimista em relação à conduta do homem no mundo. Sendo assim, não é exagerada a afirmação de que vive-se atualmente a crise da moralidade, assunto que será abordado nesse artigo.


1. DEFINIÇÃO DE TERMOS

1.1. Moralidade
Costuma-se ouvir acerca da moralidade cristã, que determinado indivíduo é alguém sem moral e que a corrupção política é imoral, frases que dão uma idéia do sentido dessa palavra. O termo latino moris, de onde se origina a palavra moral significa costume, vontade, uso. Em uma definição clássica, “moral é o conjunto de regras de conduta assumidas pelos indivíduos de um grupo social com a finalidade de organizar as relações interpessoais segundo os valores do bem e do mal”[1]. A moralidade, portanto, norteia comportamentos e decisões. Além disso, a moral apresenta as noções de certo e errado essenciais ao relacionamento humano. Dessa forma, é um erro afirmar ou pensar que determinados indivíduos ou grupos sociais são desprovidos de moral. Mesmo que os critérios e bases morais sejam diferentes, cada indivíduo é dotado de um senso moral. Quando alguém denuncia a injustiça, protesta contra a violência, demonstra solidariedade para com os oprimidos, sofre com uma traição amorosa, para diante de um sinal vermelho, faz oposição ao aborto, à eutanásia e à clonagem humana, destaca o valor do casamento e da família, etc, está dando apenas alguns exemplos desse senso moral. Esse ponto de vista está de acordo com a doutrina cristã, a qual sustenta a moralidade inerente ao homem. Criado de acordo com a imagem e semelhança de Deus, o homem é por natureza um ser moral. Ilógico seria pensar que um Deus essencialmente moral deixaria o gênero humano, a mais perfeita de suas criações, desprovido de moralidade. Se o homem não fosse capaz de escolher o certo e o errado ele, sequer, seria capaz de escolher se seria certo adorar o seu criador, o que seria uma grande contradição e um ato de injustiça. Deus não exige que um cachorro lhe adore, pois sabe que ele não tem senso de moralidade para escolher por esse ato. Se ele exige essa adoração do homem, é porque ele é um ser moral. É bom que se diga que isto vale mesmo para o homem descrente. O texto bíblico mais esclarecedor acerca deste assunto nos foi fornecido pelo apóstolo aos gentios. Falando aos romanos ele afirma:

Quando, pois os gentios que não têm lei, procedem por natureza de conformidade com a lei, não tendo lei, servem de lei para si mesmos;Estes mostram a norma da lei gravada nos seus corações, testemunhando-lhes também a consciência, e os seus pensamentos mutuamente acusando-se ou defendendo-se Rm. 2:14,15.

Nunca é demais acrescentar que Paulo está escrevendo aos romanos, a sociedade mais corrompida da época. Mesmo esta sociedade tão depravada, naufragando na promiscuidade, possuía um senso moral. Ou seja, não é possível usar a desculpa de que eles praticavam o erro porque não sabiam agir corretamente, ao modo platônico. Na verdade, em sentido mais restrito, quando se escolhe o erro já se demonstra esse senso de moralidade.


1.2. Crise
Ouve-se bastante, sobre crise político-econômica, crise familiar, crise religiosa, o que, na maioria das vezes, leva a uma negligência em relação a crise-mestra da maioria das crises que assolam a sociedade do século XXI. Trata-se da crise da moralidade, problema que em outros lugares denomina crise de valores. Entre outras definições, o dicionário de língua portuguesa afirma que crise é a “manifestação repentina e violenta da perda de equilíbrio”[2]. Vista sob qualquer perspectiva, a crise é sempre uma anormalidade, uma alteração de um estado inicial. O que importa nesse momento é a crise da moralidade. Sem dúvidas, esse estado patológico da moralidade atual, como será visto mais a frente, é caracterizado por uma aguda perda de equilíbrio. Além disso, esse problema tem um comportamento violento e procura impor-se com agressividade. Não obstante, esse fenômeno não é uma mera mudança repentina. Essa moléstia letal percorreu um longo caminho até chegar ao seu estado metástico. E essa tal fase metástica, o momento mais perigoso da doença moral, já chegou. Os tempos difíceis preditos pelo apóstolo Paulo já começaram.
1.3. Valor
Não se pode falar em moralidade sem se falar em valor e sem uma noção exata da importância dessa palavra. O vocábulo pode se definido como “a propriedade que os objetos têm de produzir satisfação imediata ou de servir de meio para se obter tal satisfação”[3]. Nessa definição é possível perceber dois tipos de valores: os instrumentais e os intrínsecos. Os primeiros são valores empregados na obtenção de outros valores, os segundos são aqueles que têm valor em si mesmos. Um exemplo do primeiro caso pode ser visto em uma pessoa que valoriza comer verduras porque é uma maneira de manter uma vida saudável, mas, se essa pessoa alimenta-se de verduras pelo simples prazer de comê-las, tem-se um exemplo do segundo caso. Partindo da definição acima, pode-se concluir que valorizar algo que não produz nenhuma satisfação, seja ela material ou espiritual, seria uma atitude mais que irracional, pois, até um boi, movido por seu instinto, prefere comer capim em vez de uma pedra. Além disso, partindo da idéia que existem valores superiores e inferiores, permanentes e transitórios, é contrário à ética cristã conceder status a um objeto acima do seu valor devido. As palavras de Jesus a Marta servem para ilustrar essa discussão. Vendo que marta se afadigava nas tarefas domésticas, ao contrário de sua irmã Maria, Jesus disse: “Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria, pois, escolheu a boa parte que não lhe será tirada” Lc. 10:41,42. Não que as tarefas domésticas não tivessem o seu valor, mas, o estar perto de Jesus e aprender a sua palavra, era um valor muito mais elevado. Marta teria todo o resto do tempo para se dedicar a estes afazeres, mas aquele era o momento de preferir a boa parte. A labuta diária, as lidas da casa cessariam, mas o conhecimento de Deus haveria de ser arremessado para os portais da eternidade.


2. DIAGNÓSTICO DA CRISE

2.1. Causa

Em tom poético, o salmista Davi afirmou: “Tu és o meu Senhor; outro bem não possuo, senão a ti somente” Sl.16:2. Séculos mais tarde, o filósofo cristão Blaise Pascal escreveria em seus Pensamentos que “somente Deus é o verdadeiro bem, e desde que o homem o abandona, é estranho que nada exista na natureza capaz de lhe tomar o lugar”[4]. A crise moral se estabelece quando o homem deixa de considerar Deus o supremo bem e o valor mais elevado na escala da existência. Quando isso acontece, perde-se o referencial, o critério. Sem a sua base, toda a construção da moralidade desmorona. Em uma coisa Nietzsche estava certo: se Deus está morto, também está morto com ele todos os valores cristãos. A propósito, o que leva muitos filósofos e estudiosos em geral a negarem a existência de Deus, não é um problema intelectual, e sim um problema moral. Não é que eles não entendam a necessidade da existência de um Deus como base para a conduta humana, mas o fato de que aceitar a existência desse Deus significaria admitir que as suas vidas estão erradas e que precisam se submeter às normas divinas. Como afirma Agostinho, “nenhum homem diz ‘Deus não existe’ a não ser aquele que tem interesse em que Ele não exista”[5]. Se Deus não existe eu não preciso prestar contas a ninguém no final.
Sem Deus, o homem perde a base absoluta da moral e o critério de julgamento fica sendo o próprio homem. Abraça-se então a filosofia de que “o homem é a medida de todas as coisas”[6]. Todavia,essa filosofia não é coerente e apresenta vários problemas. O principal é que, sendo limitado, o homem não pode ser um padrão absoluto para a moralidade. Partindo unicamente do homem, não se pode falar de um amor infinito, de uma regra universal, de uma santificação plena, etc.
Diante do que foi apresentado, pode-se constatar que a principal causa da crise da moralidade está no fato do homem perder o referencial divino. Esse abandono tem sido mais intenso do que em qualquer outro momento da história. O crescimento das seitas é uma ilusão perniciosa de que o homem está se voltando para Deus. O fato é que, na maioria desses grupos, Deus não é colocado como supremo valor. Além disso, para usar uma idéia de Schaeffer, é preciso identificar qual é o tipo de Deus que eles professam, o Jesus em quem eles depositam sua fé[7].
Muitas pessoas reclamam que a violência tem crescido nas escolas, que os alunos vão para as aulas armados, embriagados e furtam os objetos da própria escola. Entretanto, estão esquecendo que, em muitos estabelecimentos o ensino religioso foi abolido e que à Bíblia não é dado nem o valor que é dado a um livro de história ou de matemática. Eis aí a causa-mestra da crise da moralidade atual: o homem tem voltado às costas aos valores divinos. Como já afirmava Pascal, “sem Jesus Cristo, o homem tem de permanecer no vício e na miséria; com Jesus Cristo, o homem está isento do vício e da miséria. Nele está toda a virtude e toda a nossa felicidade. Fora dele, só há vício, miséria, erros, trevas, morte e desespero”[8].

O conhecido filósofo ateu Michel Onfray, em entrevista recente a revista Veja, deixou claro que para que o homem seja realmente livre, é necessário que Deus não exista. Seguindo o pensamento do seu compatriota Jean Paul Sartre, ele defende que a existência de um Deus absoluto é um insulto à liberdade do homem. No mesmo artigo, Onfray deixa claro qual o sentido da liberdade por ele defendida. Quando indagado acerca de suas atividades em sua chamada universidade popular, ele respondeu: que lhe cabia a responsabilidade de ensinar aos seus alunos uma contra-história da filosofia - atéia, materialista, sensualista, hedonista e anarquista[9]. Este exemplo reforça ainda mais a tese inicial desse artigo: a idéia segundo a qual o homem perde a base da moralidade quando retira Deus do centro. Sem Deus, como ficou evidenciado no exemplo de Onfray, o homem entrega-se ao sensualismo, à imoralidade sexual, aos prazeres descontrolados, ao anarquismo.


2.2. Conseqüências

2.2.1. Hedonismo
O hedonista é aquele que coloca o prazer como medida para a sua felicidade. Mesmo abandonando a Deus, o homem continua buscando a felicidade. Todavia, sem o referencial divino o seu critério se torna a satisfação imediata. Sem base moral adequada o homem se torna amante dos prazeres. Uma das faces mais sombrias desse hedonismo é a perversão sexual, a alienação erótica. A mídia contribui para que o despertar da sexualidade dos jovens seja cada vez mais cedo. Ao ter a sua sexualidade despertada de forma precipitada e vivendo em uma sociedade sem base moral adequada, o jovem passa a ter como alvo de vida a cega satisfação dos seus prazeres. “Ninguém pode negar que o poder de manipulação erótica é tremendo. Ela torna uma sociedade fraca, passiva e sem força de reação”[10]. Na busca desenfreada pela satisfação hedonista, os jovens acabam se tornando escravos de seus próprios desejos. Sem dúvidas, os desejos e prazeres exercem um poder tremendo sobre o nosso comportamento e decisões. É por deterem tal poder que eles precisam ser controlados por normas morais. Afinal de contas, o que seria de uma comunidade onde todos tivessem o desejo de matar e não houvesse uma norma moral proibindo o assassinato? Os desejos não podem ser satisfeitos a qualquer custo. Limites precisam ser estabelecidos. Até mesmo Epicuro, fundador da filosofia hedonista, aconselhava os seus discípulos a distinguirem entre os prazeres em repouso e os prazeres em movimento, optando pelos primeiros[11].

A ética cristã condena o hedonismo, o culto desenfreado aos prazeres. Contudo, isso não quer dizer que ela elimina qualquer tipo de prazer. Isto seria um outro extremo, o ascetismo. O cristão pode sentir prazer e buscar a satisfação dos seus desejos dentro dos parâmetros divinos. Caso contrário teríamos que admitir a existência de um Deus cruel que criou o homem fadado ao sofrimento. O homem foi criado para sentir prazer, e o seu prazer último está em Deus. Davi transmite essa idéia, quando declara em um dos seus salmos: “Deleita-te no Senhor, e ele satisfará os desejos do teu coração” Sl. 37:4.

2.2.2. Superficialidade
Já foi afirmado que o mundo atual é descartável: os produtos de consumo, os relacionamentos e os valores possuem prazo de validade, uma prazo bastante curto. Nessa sociedade descartável prevalece a superficialidade. Os relacionamentos interpessoais são aparentes e sem profundidade. Na verdade, essa conseqüência é extremamente lógica. Em uma sociedade sem base absoluta, até mesmo os sentimentos e relacionamentos ficam a mercê dos ventos dos modismos e são desfeitos com a mesma velocidade com que são estabelecidos. Vê-se o crescimento assustador do número de divórcios. Atualmente, de cada dez casais, três conseguem chegar ao quinto ano de casamento, destes, apenas um ultrapassa o décimo ano. Isso é um reflexo da superficialidade atual. Os casais que tem mais de cinqüenta anos junto são hoje considerados peça de museu. Por terem conseguido a façanha, eles têm espaço aberto nos principais programas de televisão. Os telespectadores aplaudem tais casais, mas, na verdade, olham para esses dois velhinhos como um símbolo daquilo que é arcaico e ultrapassado. A verdade é que os relacionamentos amorosos seguem o padrão da superficialidade. “No período de algumas horas, duas pessoas, passam de completos estranhos a ardorosos amantes e a completos estranhos novamente”[12]. Entre os jovens, uma das palavras mais conhecidas é “ficar”. A moda tem tanto sucesso atualmente que o questionamento feito não é: ficar: sim ou não?, mas ficar: quantas vezes por noite? Ou seja, hoje não se questiona mais se essa prática é errada, mas quantas vezes seriam necessárias alguém “ficar” para poder se sentir bem consigo mesmo.

A superficialidade trazida pela crise moral é tão devastadora que a própria igreja tem sido afetada por ela. Hoje é fácil encontrar os crentes que “ficam” na igreja. Esses novos adeptos vão a uma igreja, mas quando ela não está mais satisfazendo os seus desejos, mudam para outra com velocidade. E assim seguem a vida cristã ‘ficando’ de igreja em igreja. O relacionamento desses ditos crentes é tão superficial que eles não possuem qualquer base doutrinária ou identidade denominacional. Se alguém lhes indagar sobre o nome do pastor da última igreja na qual congregaram, não saberão responder. Muitas igrejas, tentando se adaptar a esta onda de superficialidade têm procurado adaptar sua estrutura, programação e mensagem. Com isso, “pregam um Cristo que salva, mas não transforma; que tem poder, mas não convence, que convence, mas não converte”[13]. Muitas igrejas, na verdade, são freqüentadas por pessoas que não têm nenhum compromisso com elas. Quando o pastor começa a falar sobre compromisso, eles já estão em outra.

2.2.3. Narcisismo
O narcisismo é qualquer forma de amor próprio centralizado e desenfreado. Sem uma base para a moralidade exterior, o homem volta-se para dentro de si mesmo e encontra no seu individualismo a base para a sua conduta. Tal individualismo é catastrófico, pois “cria uma ilusão de dependência, gerando egoísmo e insensibilidade”[14].

A ética cristã não condena o amor-próprio, e sim o amor-próprio interiorizado, que é o narcisismo. Quando o amor-próprio não é externado a outrem, tem-se uma atitude egoísta. O narcisismo caminha de mãos dadas com a superficialidade. Muitas vezes, determinada pessoa não quer um relacionamento mais profundo com o seu próximo porque não deseja ser participantes das necessidades dele. Prefere estar fechado em seu mundinho particular, preocupando-se apenas com a sua satisfação individual. Mesmo que esta satisfação envolva as realizações mais triviais. Para tais pessoas, o mandamento sobre “levar as cargas uns dos outros (Gl. 6:2), está completamente desatualizado.

2.2.4. Liberalismo comportamental
De acordo com o ditado popular, “quando os pais deixam de ser quadrados, as filhas ficam redondas”[15]. Atualmente, os pais têm ficado cada vez menos quadrados e as filhas estão ficando tão redondas a ponto de “explodirem”. Em uma sociedade sem freio moral, onde tudo é permitido, aqueles que sustentam valores como honestidade, fidelidade, pureza, são considerados espécies em extinção. Uma jovem que chega aos 18 anos virgem é motivo de piada. O jargão contraditório “é proibido proibir”, é a frase predileta da ‘galera’. Tudo isso, em nome de uma suposta liberdade. Os que advogam essa tendência estão esquecendo que liberdade sem parâmetros é depravação moral. Comportamento sem normas é mais que animalesco. “Em nome da liberdade, alguns pretendem defender certas ideologias que comprometem até a própria continuidade da comunidade onde vivem, como a legalização das drogas”[16]. O liberalismo comportamental é tão intenso que hoje, uma adolescente pode chegar sem nenhum pudor ou constrangimento para a sua mãe e dizer: “mãe, estou saindo para ir a um motel com o meu namorado”. A mãe, apenas aconselha: “tudo bem filha, mas não esqueça de usar camisinha, hein!”.

2.2.5. Exaltação do ridículo
Sem o referencial divino, a sociedade perde os padrões de beleza, coerência e organização, passando a valorizar o ridículo, o banal. A música é apenas um dos exemplos desta exaltação. No Brasil, o MC Serginho com sua “eguinha pocotó, ganha disco de ouro, a Tate Quebra-Barraco, com seus refrões agressivos e obscenos é tocada em todas as rádios, os programas de TV que noticiam escândalos e baixarias têm mais audiência do que os noticiários. Parafraseando o título da obra do humanista Erasmo de Roterdã, é um verdadeiro ‘elogio à loucura’, um culto animalesco ao absurdo. O curioso nesse fato é que o homem foge do escândalo da cruz, mas abraça um tipo de escândalo muito pior: um escândalo desprovido de moralidade. Na igreja, a exaltação do ridículo começa com a perda da referência. O culto a Deus é desprovido de ordem é marcado pelo improviso.

2.2.6. Culto ao efêmero
Ao abandonar Deus e seus valores eternos, o homem agarra-se com todas as forças àquilo que é passageiro. Em seu imediatismo, tudo que importa é a satisfação presente e nada mais. Não sabe ele que, buscando a satisfação apenas nas coisas presentes, chegará à mesma conclusão a que chegou Salomão há quase três mil anos atrás: “Considerei todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também o trabalho que eu, com fadigas havia feito, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nenhum proveito havia debaixo do sol” Ec. 2:18.

O filósofo Francês Gilles Lipovetsky, autor do livro Império do efêmero, usa a expressão hiper-modernidade para classificar a fase atual da sociedade. Nessa fase, “os planos de carreira, projetos de família e tudo que visava uma escala racional rumo ao porvir, foram substituídos pelo culto ao presente”[17]. Novamente, a lógica dessa conseqüência é simples. Se Deus não existe e não é necessário prestar contas a ninguém, para empregar uma expressão paulina, “comamos e bebamos porque amanhã morreremos”. Só resta ao homem aproveitar o presente.

A sociedade em crise deixa de considerar as coisas passageiras não podem trazer uma satisfação plena. Salomão afirma que “Deus plantou a eternidade no coração do homem”. Tendo a fagulha do infinito, o homem não pode se satisfazer plenamente com o efêmero. O soneto denominado A semente do ser ilustra essa questão de forma poética:

Plantou Deus o eterno no humano,
Para nele o efêmero não bastar,
Inda que lhe transborde como o mar,
Tudo é vento, aflição e desengano.

O supremo bem não pode achar
No momento volátil e insano,
Desfaz-se tudo em dia, mês e ano,
E outro tudo recebe o seu lugar.

Esta fome do todo em nós perdura,
Sensação de infinita incompletude,
Sempre estamos de algo à procura.

A medida do efêmero nos ilude,
O seu tudo, seu nada prefigura,
No extenso está sua finitude]18].


2.2.7. Conformismo
A idéia de que tudo é permitido tem levado a sociedade atual para o precipício do conformismo. Em nome da aceitação das diferenças individuais, acaba-se aceitando as idéias mais absurdas e contraditórias. Há muito pouco tempo, ninguém ousava defender a legalização das drogas. Atualmente, isso não representa nenhuma novidade. Muitos programas de televisão fazem apologia às drogas abertamente. As propagandas em defesa da oficialização do aborto não são menos freqüentes.

O pluralismo religioso colabora indiretamente com este conformismo. Cada um tem a sua verdade, mas como estas verdades não são respaldadas em princípios divinos, acaba-se chegando à conclusão de que a verdade de determinada pessoa é tão limitada quanto a do seu companheiro. Conclusão: cada um é levado a aceitar passivamente a suposta verdade do outro. Se cada um tem a sua verdade, não existe verdade absoluta, pois uma limita a outra.

2.2.8. Cultura do exagero
Camilo Vannuchi, tendo como base Lipovetsky afirma que “na era atual, princípios como individualismo e mercantilização da vida levaram à cultura do exagero. Não basta ser ou ter muito. O que vale é o conceito do hiper”[19]. Como profetizou o apóstolo Paulo, o homem atual tem cada vez mais perdido o equilíbrio. Sem equilíbrio, exatamente porque não tem base moral adequada, ele se entrega aos extremismos religiosos, sociais e profissionais. A cultura do exagero conta com a ajuda incondicional da publicidade, do marketing e vende ilusões à uma sociedade alienada. Na análise de Lipovetsky, “a cultura do excesso é isso: as coisas parecem verdadeiras, mas são exageradas. São bolhas que, se a gente colocar um alfinete, estouram[20].
Bombardeados por essa cultura do excesso e sem base moral sólida, o homem é levado a pensar que o necessário não é mais suficiente, ele já não se satisfaz com o básico. Em virtude disso, está sempre em uma corrida angustiante em busca do esbanjamento. Isso porque nesta sociedade, o exagero, mais do que garantia de status é uma questão de identidade. Um bom exemplo disso é o caso dos aparelhos celulares. A maioria das pessoas está sempre em busca de um que garanta mais vantagens, mesmo que a única vantagem da qual elas desfrutem seja a origem e recebimento de chamadas. Mas, como todos no grupo já têm a novidade, elas não querem perder a identidade com o grupo.

Sem moralidade adequada o homem perde o equilíbrio. O cristão deve dizer não à cultura do exagero, tendo como base vários princípios bíblicos. Em primeiro lugar, a Bíblia ensina a importância da simplicidade e de se viver de acordo com as necessidades (Mt. 6:11). Afinal é contra a moral cristã, alguém esbanjar, enquanto outras pessoas, às vezes na própria igreja, estão passando necessidades. As palavras de Tiago se aplicam muito bem a este princípio: “Pedis, e não recebeis por que pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres” Tg. 4:3. Um outro princípio que vai contra a cultura do exagero está no fato da Bíblia exortar o cristão a ter uma vida equilibrada. De fato, um dos frutos do Espírito é o domínio próprio Gl.6:23. Há ainda o princípio da prudência e do discernimento. O discípulo de Cristo tem o dever de “observar todas as coisas e reter o que é bom” I Ts. 5:21.

2.3. Cura
A cura adequada de uma epidemia não se dá a partir das conseqüências que ela apresenta, e sim a partir de suas causas. Esse princípio aplica-se à crise da moralidade, essa epidemia infecciosa. É preciso, portanto, que a sociedade coloque Deus como referencial e como base absoluta de moralidade, pois é exatamente por não aceitar esse fato que esta sociedade está caminhando para o caos moral. Se isso não acontecer, não adianta melhorar as estruturas sociais, mudar os sistemas políticos, investir na educação. Sem o referencial divino todos estes esforços serão debalde. A maldade humana decorrente de sua Queda não pode ser desconsiderada. O homem é perverso e, sem Deus, dá vazão aos sentimentos mais baixos e repugnantes.


CONCLUSÃO

Diante do que foi apresentado, não nos iludamos. O crente fiel – redundância proposital – terá cada vez mais dificuldade para viver de acordo com as normas divinas, no meio de uma sociedade corrupta e sem moralidade adequada. Aliás, o próprio Jesus disse aos seus discípulos: “no mundo passareis por aflições”. Mas ele tem o consolo que é dado por Jesus aos seus discípulos: “tende bom ânimo, pois eu venci o mundo”. Portanto, ele não deve ceder às pressões desta sociedade que, por desprezar o referencial divino, está marchando para o caos de valores.


NOTAS:

1. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. 2. ed. rev. São Paulo: Moderna, 1998. p.117.

2. SOARES, Armando. Moderníssimo dicionário brasileiro. São Paulo: Angelotti LTDA. p. 300.

3. YOUNG, Waren C. Un enfoque cristiano a la filosofía. Grand Rapids: Mundo hispano, 1979. p.164.

4. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 133.

5. AGOSTINHO apud SAYÃO, Luiz. Cabeças feitas: filosofia prática para cristãos. 3. ed. São Paulo: Hagnos, 2001. p. 55.

6. PROATÁGORAS apud MONDIN, Batistta. Curso de filosofia. vol. 1. São Paulo: Paulus, 1982. P. 95.

7. SCHAEFFER, Francis A. O Deus que se revela. São Paulo: Cultura cristã, 2002. Passim.

8. PASCAL, Blaise. op. cit. p. 153.

9. ONFRAY, Michel. ad. tempora.

10. SAYÃO, Luiz. op. cit. p. 46

11. Epicuro. Antologia de textos. (Versão para ebook). Disponível em <
www.ebooksbrasil.com> (Acessado em 22 de setembro de 2007).

12. AMORESE, Rubem. Icabode: Da mente de Cristo à consciência moderna. Viçosa: Ultimato, 1998. p.120.

13. AMORESE, Rubem. op. cit. p. 134.

14. SAYÃO, Luiz. loc. cit.

15. ad. tempora.

16. SAYÃO, Luiz. op. cit. p. 42.

17. LIPOVETSKY, Gilles apud VANNUCHI, Camilo. A sociedade do excesso. Revista Isto é, 19 e agosto de 2004. p. 61.

18. MARQUES, José Lopes. Razão, fé e sensibilidade. Ananindeua: SEIFA, 2007. p. 30. (Não publicado).

19. VANNUCHI, Camilo. loc. cit.

20. LIPOVETSKY, Gilles apud VANNUVHI, Camilo. op. cit. p. 63.
Postado por J. Marques

quinta-feira, 13 de março de 2008

LOUVAI AO SENHOR: Breve análise do salmo 117

INTRODUÇÃO

No contexto eclesiástico atual vive-se o que poderíamos classificar como a era do entretenimento, cuja característica principal está no uso exagerado do louvor com o propósito de divertir e satisfazer as emoções pessoais. O mais importante quando estão louvando não é se Deus está sendo lembrado, mas, se estão se sentindo felizes e animados. Para os proponentes do chamado entretenimento litúrgico, louvor é mais definido em termos musicais. Entretanto, a música não é usada como um instrumento para o louvor, mas, com a única finalidade de entreter. Os textos bíblicos mais usados para defender e apoiar esta pratica são os salmos.

Quando nos deparamos com esta realidade surgem em nossa mente perguntas como: o que é na verdade o louvor? Como louvar a Deus? Por que louvar a Deus? Qual o propósito do louvor? Será que os participantes do entretenimento podem responder biblicamente todas estas perguntas? Uma tentativa de resposta a estes questionamentos será feita a partir do salmo 117. Sendo assim, o propósito do presente artigo é apresentar um conceito bíblico de louvor, a partir do referido salmo. Por meio dessa análise, será verificado se, biblicamente, há fundamento para pratica do louvor como usado em nossos dias, ou se as pessoas que empregam esse tipo de adoração estão trilhando um caminho que não é bíblico.

1. INTRODUÇÃO AO SALMO

Em alguns manuscritos na língua original do Antigo Testamento (em pelo menos 35) o salmo 117 está ligado ao poema ou salmo anterior (116), já em outros manuscritos está ligado ao salmo seguinte (118). Porém, tanto no texto hebraico como na LXX, o salmo 117 é tratado como um texto à parte, ou seja, o salmo em questão apresenta uma unidade de conteúdo, sem precisar do salmo anterior, ou do seguinte para expressar uma idéia completa.

Os dois versículos que constam no salmo contêm um ato de louvor completo. O primeiro verso, empregando um paralelismo, faz um chamado ao louvor, além de mostrar que Deus deve ser louvado e responder às perguntas: o que é louvor? Quem deve louvar? Esse trecho apresenta ainda uma idéia sobre o propósito do louvor. O segundo verso, que tem forma semelhante, completa o chamado ao louvor, expressando os motivos para o mesmo. De caráter universal, o chamado inclui todas as nações e todos os povos. O conceito de Deus é igualmente grandioso, conforme Sua misericórdia e verdade são destacadas.

Não podemos afirmar com exatidão quem foi o escritor desse salmo, mas o que se pode dizer é que Deus foi o autor, colocando-o na coletânea de cânticos da congregação de Israel, a fim de que a Sua misericórdia e fidelidade fossem motivos de louvor.

2. ANÁLISE DO TEXTO

Tema: Deus deve ser louvado


Já foi dito acima que o assunto abordado no salmo é o louvor ao Senhor, contudo, precisamos observar o que o próprio salmo tem a dizer. A estrutura do salmo nos dá uma indicação de que a idéia central apresentada é o louvor ao SENHOR. Primeiramente, o salmo começa com a expressão “Louvai ao Senhor” e termina coma mesma expressão, só que de forma contraída “Aleluia” (a palavra aleluia é a contração da expressão “louvai ao Senhor”), nos indicando que, aquilo que está entre as duas expressões iguais, está relacionado a elas, ou mesmo descrevendo e completando a idéia expressada por elas. Já que estas duas expressões começam e finalizam o salmo, chamando a atenção do leitor ou cantor, parece-nos que o propósito do escritor é abordar o louvor ao Senhor como o assunto principal do salmo. Além disso, as expressões, “louvai ao Senhor” e “aleluia” estão no modo imperativo, que indica uma orden a ser obedecida. Portanto, diante de tudo isso, resta-nos a conclusão de que o propósito do escritor no salmo 117 é exortar-nos que devemos louvar ao Senhor. Vejamos agora que respostas este salmo nos dará às perguntas feitas acima.

“Louvai ao SENHOR, vós todos os gentios, louvai-o, todos os povos.”

O que é louvar ao SENHOR?

Existe um adágio popular que diz que “nos pequenos frascos estão os melhores perfumes”, para este salmo podemos dizer que é verdadeiro, pois, sendo tão breve apresenta um conceito completo e profundo acerca do louvor. Não estamos aqui desconsiderando os demais salmos, mas enfatizando a riqueza deste pequeno salmo, que quando entendido dentro de seu propósito nos conduzirá a um louvor correto.

O conceito de louvor que o salmo 117 apresenta responde satisfatoriamente a pergunta sobre o que é o louvor. Primeiramente, o salmista define o louvor ao Senhor quando usa o verbo “louvai”. Este verbo nos dá uma boa indicação do que vem a ser esse louvor apresentado no salmo, pois, segundo o DITAT (Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento) a raiz da expressão (louvai) “conota a idéia de estar sincera e profundamente agradecido e de estar satisfeito em elogiar alguma(s) qualidade(s) superior(es) ou grande(s) feito(s) do objeto da ação”[1]. O verbo pode ser usado no contexto humano, mas o uso mais freqüente diz respeito a Deus, e das 206 vezes que a raiz aparece no Antigo Testamento, quase um terço está nos salmos, e o maior número das vezes em que aparece são imperativos de convocações ao louvor. A freqüência e o modo imperativo enfatizam a necessidade vital de tal ação. Desta parte poderíamos dizer que louvar ao Senhor é uma resposta de gratidão ao uso que Deus faz de Seus atributos sobre a Sua criação. É exatamente esta a idéia que o salmista nos apresenta, pois no verso 2 os atributos de Deus são claros motivos de louvor.

Em segundo lugar, para complementar o conceito de louvor, o salmista usa a expressão (louvai) no tronco “piel” que na língua original do Antigo Testamento indica uma ação com sentido intencional e contínuo. Ao usar este sentido o texto nos fornece pelo menos dois princípios. Primeiramente, quando louvamos estamos conscientes do que estamos fazendo, pois o fazemos intencionalmente. Por conta disso, podemos controlar a maneira como louvamos. Em segundo lugar, o texto também nos fornece o princípio de que devemos louvar a Deus não somente em um momento específico como um culto público, mas em todos os momentos de nossas vidas, pois Deus é continuamente favorável a nós.

Neste ponto é importante fazer algumas observações comparando o conceito de louvor apresentado pelo salmista com o conceito de louvor praticado pelos integrantes do entretenimento.

Queremos destacar primeiramente o uso das “emoções”. Foi dito no início que uma das intenções dos participantes do entretenimento quando estão louvando é satisfazer as emoções pessoais. Temos que admitir a existência de emoções no louvor, contudo, precisamos definir que tipo de emoções o louvor exige, e seu real lugar no mesmo. Na sua essência, louvar é estar profundamente agradecido pela ação favorável de Deus. A gratidão é o sentimento ou a emoção que nos ajuda a lembrar e ver Deus quando louvamos. Portanto, quando alguém usa o louvor a Deus como um meio de sentir-se emocionalmente satisfeito está trilhando num caminho pecaminoso, pois está fazendo de suas emoções um fim em si mesmo, e quem assim age está caminhando em idolatria, pois está ocupando um lugar que pertence a Deus, visto que somente Deus pode ser um fim em si mesmo, por ser o Senhor e Criador de todas as coisas, inclusive das emoções. Devemos louvor a Deus porque estamos satisfeitos com o que Ele é em relação a nós e não para nos sentirmos emocionalmente melhor.

Podemos ainda destacar que, com o uso das expressões “ministério de louvor”, “culto de louvorzão” além de outras, muitos têm definido o louvor dentro do limites musicais. Não há dúvidas que a música é um meio de exaltarmos a Deus, expressando nossa gratidão, entretanto, precisamos lembrar que este não é o único meio, e que não se constitui um louvor em si. Não queremos ser injustos deixando de mencionar aqui que o contexto do salmo 117 bem como dos demais é um contexto musical, pois como já foi dito, os salmos são cânticos entoados pela congregação de Israel. Porém, precisamos ter em mente que o ensino contido no salmo 117 com o uso da expressão “louvai” no tronco (“Piel”) indicando uma ação contínua mostra a existência de vários meios para louvarmos a Deus. Não podemos cantar continuamente, mas podemos louvar constantemente. Louvamos a Deus com tudo aquilo que faz lembrar Sua ação graciosa em nós.

Qual o propósito do louvor?

Muito já foi dito acima sobre o propósito do louvor, quando destacamos a idéia de que o louvor deve ser um meio de ver Deus como um fim em si mesmo. O salmista se expressa com ênfase e clareza quando diz que o louvor deve ser ao “Senhor”, tanto no inicio do salmo 117 quanto no final, e na verdade esse é o assunto em pauta. É indispensável neste ponto termos uma definição e compreensão acerca do Senhor a quem dirigimos o louvor. O Senhor em simples definição é aquele que não tendo sido criado por ninguém é auto-existente, que criou todas as coisas, e de quem toda a existência depende. Por ser soberano, e por dependermos dele, o nosso louvor deve ter como propósito ser uma exaltação, um reconhecimento de quem de fato Deus é.

Se o propósito do louvor não for correto, perde-se o seu sentido. Quando alguém, por exemplo, louva a Deus tendo em vista a sua satisfação pessoal, na verdade não é a Deus que ele está louvando, mas a si mesmo. E quando isso acontece, o louvor sai de cena e entra a vanglória. Precisamos louvar com propósito correto, que é exaltar e contemplar a grandeza de Deus, o Senhor.

Quem deve louvar?

O texto do salmo 117:1 diz “Louvai ao SENHOR, vós todos os gentios, louvai-o, todos os povos”. Temos duas expressões, “gentios” que neste contexto pode estar se referindo aos povos que não são judeus, e “povos” que neste caso inclui pessoas de todas as nações, tanto judeus com não-judeus. Neste ponto temos que considerar que este salmo foi escrito e cantado dentro do contexto do povo judeu que era declaradamente o povo de Deus o qual vivia debaixo do cuidado constante de Senhor. Porém, quando o salmista usa as expressões, “gentios” e “povos” está transmitindo abertamente o princípio de que a benção e a salvação de Javé ultrapassaram as fronteiras de Israel. O chamado ao louvor aqui se estende a cada pessoa do mundo, ou pelo menos a pessoas de todas as nações, que parece ser o mais coerente com o restante do contexto ainda a ser tratado.

Acho que seríamos coerentes se mais uma vez declarássemos que o louvor não pode ser definido somente em termos musicais, pois, se o chamado é para todos louvarem, temos que admitir que todos têm a capacidade de louvar, mas nem todos têm a capacidade de cantar. Portanto, todos devem exaltar a brilhante ação do criador sobre sua criação.

“Porque mui grande é a sua misericórdia para conosco, e a fidelidade do SENHOR subsiste para sempre. Aleluia!”

Por que louvar o SENHOR?

A riqueza deste salmo é contemplada à medida que o analisamos. E, quanto mais contemplamos sua riqueza mais ficamos certo de como louvar ao Senhor corretamente. Este conceito correto de louvor nos ajuda a admirar intensamente a Deus. Tendo já adquirido respostas para as perguntas: o que é louvar? Qual o propósito do louvor? E quem deve louvar? Passemos agora a analisar o segundo verso buscando do salmo a resposta para a pergunta: por que louvar, ou qual o verdadeiro motivo do louvor? Até aqui já sabemos que Deus deve ser louvado, visto que somos ordenados a fazer isto, mas qual seria o motivo por que devemos louvar esse Deus?

O segundo verso do salmo começa nos apresentando os motivos por que louvar ao Senhor, primeiramente com a expressão “Porque mui grande é a sua misericórdia para conosco”. Esta expressão “mui grande” também pode ser traduzida como “o que prevalece”. A palavra “misericórdia” é usada em ouras partes do Antigo Testamento para falar da bondade ou da benignidade de Deus. A bondade ou benignidade se refere ao interesse de Deus pelo bem-estar daqueles que Ele ama. Portanto, quando o salmista fala da misericórdia de Deus, está falando, na verdade, da demonstração do amor de Deus. Juntando as expressões “o que prevalece” e “demonstração do amor de Deus” podemos afirmar que o primeiro motivo por que temos que louvar a Deus é porque diante de tudo o que acontece conosco, o que prevalece em nossas vidas é a demonstração do amor de Deus em Sua misericórdia. Expressando-se poeticamente, Jeremias diz que esta misericórdia se renova a cada manhã. Contemplemos todos os dias a misericórdia de Deus sobre nós, e louvemo-lo por isso.

O segundo motivo por que devemos louvar ao Senhor é destacado pelas expressões “a fidelidade do SENHOR subsiste para sempre”. A “fidelidade do Senhor” é aquele atributo de Deus que o revela como verdadeiro e acreditável. Poderíamos dizer que a fidelidade é a garantia de que ele cumprirá as suas promessas. A expressão “subsiste para sempre” é usada pelo salmista só por questão de ênfase, pois se ela não subsistisse para sempre não seria fidelidade.

Porém, ainda nos resta uma pergunta: a quem realmente se aplicam as expressões “misericórdia” e “fidelidade”, no contexto em que tais atributos divinos são motivos, porque todos os povos devem louvar ao Senhor? A reposta a esse pergunta pode ser encontrada na interpretação que Paulo faz desse texto quando cita o verso 1 do salmo 117 em Romanos 15:11. No contexto imediato (Rm.15:8-9) Paulo fala do ministério da circuncisão, e da promessa de salvação feita ao povo de Deus, e no mesmo contexto diz que Cristo foi constituído ministro da circuncisão, também para que os gentios glorifiquem a Deus por causa da sua misericórdia. Então, depois disso, Paulo passa a citar algumas passagens do Antigo Testamento, entre elas (Sl.117:1). Paulo, portanto, cita este verso do salmo para mostrar que todos os povos devem louvar a Deus porque a sua salvação transpondo as fronteiras de Israel se estende a todas as nações. Esse é na verdade um verdadeiro motivo para Louvor ao Senhor. Devemos louvar a Deus porque mesmo em meio a toda esta pecaminosidade a sua salvação prevalece em nossas vidas, e Deus jamais voltará atrás sobre a decisão que Ele tomou de nos salvar.

CONCLUSÃO

A maneira como praticamos o louvor deve estar de acordo com o ensino apresenta nas Escrituras, este pequeno salmo nos forneceu um conceito brilhante acerca do louvor. Com ele aprendemos que louvar é nos expressarmos a Deus em gratidão, aprendemos ainda que o propósito do louvor é exaltar a Sua pessoa, além do fato de que todos os povos devem louvar a Deus porque a Sua salvação se estende a todas as nações. Através deste conceito de louvor apresentado, é possível avaliar quão distante muitos estão do verdadeiro louvor. Somos ordenado a louvar a pessoa certa (Deus), com o propósito correto (exaltar a Deus), pelo motivo correto (a salvação de Deus a nós).

Nota:

1. HARRIS, Laird; ARCHERm Gleason; WALTKE, Bruce. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida nova, 1998. p. 349.
Postado por J. Figueiredo

terça-feira, 4 de março de 2008

O SINAI E A ACADEMIA: BREVE DIÁLOGO ENTRE A ÉTICA MOSAICA E A PLATÔNICA



INTRODUÇÃO

Há certo debate entre os historiadores da filosofia sobre uma possível influência mosaica nos escritos platônicos. Alguns chegam a atribuir ao fundador da academia o epíteto de “Moisés helenizado”. Seria digna de ser levada a sério tal conclusão? Do lado judaico-cristão pode-se encontrar pensadores famosos como Fílon de Alexandria, Justino, O Mártir e o próprio Orígenes que foram fortes simpatizantes desta teoria. Destes, o primeiro alistado, no desenvolvimento de seu pensamento, empreendeu uma síntese entre a filosofia platônica e o pensamento mosaico.

Historicamente, não há como comprovar um possível contato de Platão com a filosofia judaica, ou com o pensamento mosaico. Apesar de ser digno de nota o fato de Platão ter viajado por quase todo o mundo civilizado da época, tendo chegado até ao Egito. Partindo de tal pressuposto é possível imaginar que o discípulo de Sócrates tenha tomado conhecimento dos escritos de Moisés, mas isto não passa de especulação.

Em virtude desta dificuldade histórica, a tarefa do presente artigo não será a de concluir se houve ou não um contato de Platão com o Pentateuco mosaico, mas, a partir de um estudo comparativo, verificar as semelhanças e divergências entre Moisés e Platão. Através desta análise será possível precisar se Platão pode ser, de fato, considerado o “Moisés helenizado”. Sem dúvidas, realizar uma comparação de todas as idéias dos pensadores em destaque é uma tarefa sobremodo extensa e que não poderia ser realizada em uma pesquisa desta natureza. Em virtude desta amplitude, será abordado aqui apenas o tópico da ética em Moisés e Platão. Ainda assim, a pesquisa terá que ser bastante seletiva no tratamento das questões éticas atinentes aos pensadores mencionados.

Este artigo é parte da monografia “Síntese entre os pensamentos de Moisés e Platão”, escrita pelo autor e apresentada ao Seminário Batista do Cariri, para obtenção do título de bacharel em teologia. As citações bíblicas foram indicadas no corpo do trabalho.


1. A CONSCIÊNCIA MORAL

1.1. Do padrão normativo

Mesmo em uma leitura superficial de A república, fica claro que para Platão o padrão normativo é o Estado. O Estado é superior à própria justiça e à verdade. Para o bem do mesmo, é permitido que os governantes mintam, violem laços familiares e cometam assassinatos. O mestre de Aristóteles defende que “os filhos dos homens inferiores e qualquer outro que seja disforme, deverão ser escondidos em um lugar interdito e oculto, como convém”[1]. Em um outro trecho da mesma obra, assim o filósofo grego se expressa: “Portanto, a causa do maior bem da cidade esta na comunidade entre os familiares, até entre os filhos e esposas”[2]. Já para o profeta hebreu, o padrão normativo é o que Deus determina em sua Palavra. Ao receber a revelação da Lei no monte Sinai, o próprio Moisés relata a exigência divina: “Guarda o que hoje te ordeno” Ex. 34:11. Sendo Deus o padrão normativo, se Ele determina que é errado mentir, segue-se que esta prática será errada, mesmo quando for usada em benefício do Estado. Se Deus se posiciona contra o assassinato (Ex. 20:13) ou contra o adultério (Ex. 20:14), tais práticas devem ser rejeitadas, mesmo que, aparentemente, possam causar algum bem isolado ao Estado. As declarações de “Eu sou o Senhor” se referindo a Deus (Ex. 6:2; 7:17), usadas em contraposição ao politeísmo também transmitem a idéia de que Deus é a regra, o padrão normativo. Nas citações anteriores ficou evidenciado que, para Platão, os fins justificam os meios. Já para Moisés, os fins só justificam os meios quando não se chocam contra Deus, o padrão normativo.
Sendo o Estado O padrão normativo, para o filósofo ateniense, toda transgressão cometida pelos homens, é uma transgressão cometida contra este órgão, em primeira instância. É o que pode ser observado neste fragmento do Críton:

Se desejar que sejas fustigado com vergastas, ou acorrentado, se desejar que vás à guerra para ali verter todo o teu sangue, deves partir sem hesitações, porque este é o teu dever; não deves desobedecer; considerando que, se é ímpio praticar a violência contra o pai e a mãe, é muito mais ímpio praticá-la contra a pátria[3].

Contrariando o pensamento platônico, Moisés nos mostra que toda transgressão, pecado ou ato de desobediência é uma ofensa direta a Deus. O episódio onde José é assediado pela esposa do Potifar é bastante esclarecedor em relação a este ponto. Diante das investidas desta mulher ele faz o seguinte questionamento: “como, pois, cometeria eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?” Gn. 39:9. José, representante do pensamento mosaico assim como Sócrates é representante do platônico, reconhece que seu ato de adultério não é apenas uma atitude de desobediência para com as leis daquele país, ou uma ofensa isolada cometida contra determinada pessoa. Não! Praticar aquele adultério significava cometer uma ofensa contra o próprio Deus. Mesmo tendo a sua dimensão social, o pecado, em primeira instância, é direcionado a Deus. Sendo Ele o padrão normativo, a transgressão viola diretamente a sua determinação. Mesmo quando fere normas sociais, é a Deus que o homem ofende em primeiro lugar. Portanto, para Platão, há mais valor na estrutura impessoal do Estado, já para Moisés, o valor último é o próprio Deus, um ser pessoal.

1.2. Da base ontológica da moralidade
Se em Platão há alguma base ontológica para a moralidade, podemos dizer que esta base está nas chamadas Idéias. É o que fica implícito neste trecho do Fédon: “Pareceu-me desde então indispensável refugiar-me do lado das idéias e procurar ver nelas a verdade das coisas”[4]. Mesmo estando presa ao corpo que é essencialmente mal, a alma tem idéias pálidas de bondade, justiça, piedade, temperança, etc. Isto ocorre porque, em uma existência anterior, a alma teve contato com as idéias perfeitas referentes a estas virtudes no mundo das idéias, o Hiperurânio. Tal conhecimento se dá pelo mecanismo que o fundador da academia denomina reminiscência. É uma espécie de recordação e, “para se ter recordação de alguma coisa é preciso, em um momento qualquer, tê-la aprendido antes”[5]. Em outra passagem da obra citada, Platão é ainda mais elucidativo:

Pois nosso argumento diz respeito agora não apenas ao igual, sobre o que raciocinamos, mas também ao belo em si mesmo, ao bom em si mesmo, ao justo, ao santo e geralmente segundo a minha expressão, a tudo aquilo que é marcado pelo cunho da ‘realidade em si’. De maneira que é para nós uma necessidade ter adquirido o conhecimento de todas estas coisas antes do nosso nascimento[6].

Também neste ponto, a discrepância entre o fundador da academia e o profeta hebreu é gritante. Quando se analisa o pensamento mosaico conclui-se de imediato que Deus é colocado como a base ontológica da moralidade. Assim, o homem é moral não porque participa da idéia, mas porque, de alguma forma, participa da divindade. Ao criar o homem, Moisés destaca que a conclusão enfática de Deus foi que “isso era muito bom” Gn.1:31. Por ter sido criado por Deus, um ser moral, o homem teve imprimido em sua consciência as noções de certo e errado. É o que fica evidenciado no diálogo entre Eva e a serpente (Gn. 3:1-4). Através deste diálogo fica claro que Eva sabia o que podia e o que não podia fazer. Se fosse possível dispor o argumento silogisticamente, uma boa opção seria a seguinte:

- Deus é essencialmente um ser moral (Gn. 18:22-33; Lv. 19:2; Dt. 4:31);
- Ora, Deus criou o homem de acordo com a sua imagem e semelhança (Gn. 1:26,27);
- Logo, o homem é um ser moral (Gn. 4:7).

Alguns, entretanto, poderiam objetar dizendo que a idéia platônica é um equivalente do Deus mosaico e que a reminiscência é apenas uma outra expressão para designar a imagem. Não é preciso ir muito longe para se constatar que tal conclusão é improcedente e sem base documental. A idéia platônica é sobremodo abstrata e indeterminada. De fato, o próprio Platão não chegou a uma conclusão plausível sobre a real natureza das idéias. O Deus mosaico, base ontológica da moralidade do homem, ao contrário, é um Ser pessoal que tem um relacionamento direto com o homem. Além disso, enquanto a reminiscência platônica diz respeito a uma existência anterior da alma antes de animar o corpo, a imagem mosaica refere-se apenas à vida presente que, em Adão começa quando Deus lhe forma a partir do barro e lhe sopra nas narinas o fôlego da vida. Os outros homens, sendo descendentes de Adão, ainda que maculada pelo pecado, herdaram a imagem de Deus Gn. 9:6.
2. ÉTICA E VIRTUDE

2.1. Das virtudes capitais
Em sua República Platão apresenta várias virtudes, mas fica claro que a justiça é a virtude por excelência. As demais virtudes são divididas de acordo com cada classe. A sabedoria é a virtude própria dos governantes, a coragem, dos guerreiros e temperança, dos trabalhadores. Onde se insere, então, a justiça? A justiça é fundamental, pois é a garantia de que cada classe realizará as suas atividades de acordo com as virtudes que lhe são peculiares. É com base nesta divisão que Platão apresenta o seguinte conceito de justiça, na República: “ora, meu caro amigo, este princípio pode muito bem ser a justiça: o desempenhar cada um a sua função”[7]. Como pode ser observado a justiça tem papel de destaque porque é o elemento que sustenta a diversidade das virtudes dentro da unidade da cidade. De modo que, “uma cidade é justa pelo fato de cada um executar nela a sua tarefa específica, em cada uma das suas três classes”[8].

Em Moisés encontra-se o amor como virtude capital. As outras virtudes, na verdade são conseqüências dele. Isto é bem expresso nos dez mandamentos da Lei mosaica (Ex. 20:1:17), onde o amor a Deus é expressado em uma adoração exclusiva a Ele e o amor ao próximo na preservação da integridade física e moral do mesmo. Em um trecho bastante conhecido, Moisés declara: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda atua força” Dt. 6:4, 5. Assim, pode-se dizer que, para Moisés, o homem é justo porque ama a Deus e ao próximo, e isto vale para as demais virtudes. Não obstante, a divergência entre Moisés e Platão vai além. O primeiro exalta o amor mais não descarta a justiça, já o segundo exalta a justiça e descarta o amor. De certa forma, em Platão, o amor está em oposição ao próprio bem. Idéia confirmada por esse trecho do Fedro:

Quando o desejo, que não é dirigido pela razão, esmaga em nossa alma o desejo do bem e se dirige exclusivamente para o prazer que a beleza promete, e quando ele se lança, com toda força que os desejos intemperantes possuem, o seu poder é irresistível. Esta força todo-poderosa, irresistível, chama-se Eros ou amor[9].

Um pensamento semelhante a este pode ser encontrado no Banquete, onde se lê: “Ora, se a Eros falta beleza, e se o que é belo também é bom, segue-se que a Eros também falta bondade”[10]. Em Moisés, não é possível divorciar amor de justiça ou amor de bondade. Uma vez que estas virtudes são, em primeira instância, atributos de um único Deus, não pode haver contradição entre elas. Amor e justiça caminham de mãos dadas. Um exemplo disto pode ser encontrado na história de Ló já aludida neste artigo. Por um lado Deus demonstra a sua justiça ao punir o pecado, por outro, expressa o seu amor e benevolência no livramento da vida de Ló.

2.2. Da verdade
Para Platão a verdade não é uma virtude indispensável. Ela até pode ser considerada uma regra geral, mas não um padrão absoluto. Por causa disto, há situações em que as pessoas podem recorrer à mentira. De Acordo com o mestre de Aristóteles, “se a alguém compete mentir, é aos chefes da cidade, por causa dos inimigos ou dos cidadãos, para benefício da cidade”[11]. Pode-se constatar nesta passagem que, para Platão, a verdade deve existir apenas para servir a cidade. Ou seja, se existir, aparentemente, algum bem para a cidade superior à verdade ela pode ser descartada prontamente. Para Moisés, uma vez que Deus é a fonte da verdade (23:19), o seu desejo é que os relacionamentos humanos, não importando a classe social, sejam caracterizados pela verdade. O nono mandamento da Lei mosaica afirma: “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” Ex. 20:16. Em Números, o profeta do Sinai reitera este princípio: “não furtareis, nem mentireis, nem usareis de falsidade cada um com o seu próximo” Nm. 19:11. Em suma, embora alguns não concordem com esta conclusão, Platão vê a verdade como uma regra geral, enquanto que Moisés a vê como um padrão absoluto.

2.3. Dos prazeres
Na concepção platônica, uma vez que o corpo é essencialmente mal, uma espécie de prisão que sustenta a alma com seus grilhões enganadores, todos os prazeres ligados a ele devem ser descartados. Fugindo destes prazeres a alma, poderá, enfim, libertar-se de sua prisão e voltar à contemplação das idéias perfeitas. Nas palavras do filho de Ariston, o objetivo do homem deve ser “separar o máximo possível a alma do corpo, habituá-la a recolher-se em si mesma, alheia a qualquer elemento corpóreo, e a permanecer, tanto quanto possível, tanto na vida presente como na futura, inteiramente desligada do corpo como de suas cadeias”[12]. Qualquer elemento corpóreo é, portanto, uma espécie de contaminação para a alma. Para o mestre da academia, aqueles que se deixam levar pelas paixões do corpo são denominados intemperantes, pois estão apegando-se a algo ilusório.

O ponto de partida mosaico é totalmente distinto do platônico. Se em Platão o corpo é essencialmente mal, em Moisés o corpo é essencialmente bom. Sendo o corpo do homem uma criação de um Deus bondoso, seria contrário à lógica que ele fosse mal. Em seu relato da criação, Moisés deixa claro que ao criar o homem, na sua dimensão corpórea e espiritual, a sua conclusão foi a de que isso era muito bom. Sendo o homem uma unidade harmônica, obra do Criador, o corpo não pode ser considerado a prisão da alma. O dualismo extremado entre a alma e o corpo presente na filosofia platônica, definitivamente, não é encontrado no pensamento mosaico. Do ponto de partida do profeta hebreu, podemos nos aventurar em outra conclusão que o coloca em clara oposição com o filósofo grego. Se um Deus bondoso criou o homem em sua parte espiritual e corpórea, é sensato pensar que este Deus criou o homem para sentir prazer, caso contrário, seria forçoso admitir um Deus extremamente cruel. Sendo o homem uma unidade, este prazer não se refere apenas à alma, mas também ao corpo. Além disso, é claro em Moisés que o homem criado por Deus, é o homem que busca a satisfação dos desejos que estão mais diretamente relacionados ao corpo. Ele foge da dor (Gn. 14:15), evita a fome (Gn. 12:10), procura saciar a sede (Ex. 17:3), etc. Somente quando se toma como ponto de partida as premissas mosaicas segundo as quais um Deus bondoso é responsável pela parte corpórea do homem, e que esse mesmo Deus criou esse homem para experimentar o prazer em todas as suas dimensões, pode-se evitar um seriíssimo dilema: o de que Deus teria se enganado ao criar um ser contraditório com seus próprios desejos e necessidades. Para solucionar tal paradoxo, Platão precisa admitir que a parte material do homem não criada por um Deus sumamente bom.

2.4. Da disposição para o mal
Para Platão, o homem natural não deseja o mal. A comprovação dessa idéia está no trecho seguinte extraído da República: “Que ninguém nos venha perturbar inadvertidamente, pretendendo que ninguém tem desejo de uma bebida que não seja boa, nem de comida que não seja de boa qualidade. Porque, na verdade, toda a gente tem desejo do que é bom”[13]. Quando o homem comete uma ação má, isto se deve unicamente à sua ignorância. Não há, por conseguinte, uma natureza pecaminosa no homem.

Moisés não descarta o chamado pecado por ignorância, mas ele deixa claro que o homem também deseja o mal. Adão e Eva, como seres livres, escolheram voluntariamente o mal ao desobedecerem à determinação divina. Outro exemplo claro disto pode ser encontrado na história de Caim. Ele já tinha sido advertido por Deus a não cometer qualquer atitude precipitada em relação ao seu irmão. O correto, então, era conter os seus impulsos, ele sabia disso. Mas, conforme observamos na narrativa mosaica, ele preferiu o erro. Em Números, Moisés fala de um homem violando o sábado, logo após o profeta ter anunciado que Deus condenava aquela prática. Muitos outros exemplos encontrados no Pentateuco ainda poderiam ser aludidos.
3. ÉTICA SOCIAL

3.1. Do papel da família

Neste ponto, as discrepâncias entre Moisés e Platão são ainda mais acentuadas. Para o discípulo de Sócrates, as autoridades, para este fim constituídas, deveram tomar conta das crianças que forem nascendo, sejam homens ou mulheres[14].Como pode ser observado, Platão tira a criança do convívio familiar desde o nascimento, algo absurdamente contrário a Moisés. Para este, a família, é uma instituição divina. Na verdade, a primeira sociedade criada por Deus.

3.2. Da educação dos filhos
Na concepção mosaica, os pais são responsáveis pela educação do filho, de transmiti-lo os valores divinos. No clássico texto de Deuteronômio Moisés deixa claro que os pais têm a responsabilidade de inculcar a lei do Senhor nas mentes de seus filhos. Em Platão, a educação das crianças é realizada de forma bastante distinta. Segundo ele, “deve-se pegar os filhos superiores e levá-los para o aprisco, para junto de amas que moram à parte em um bairro da cidade”[15]. Com isso, o laço familiar é violado, em um tipo de educação que mais parece adestramento de animais.

3.3. Do matrimônio
Platão acredita que os casamentos devem ser arranjados e promovidos pelo Estado. Tal manipulação, segundo ele mesmo afirma, deve ocorrer a fim de que os melhores homens se casem com as melhores mulheres. É o que pode ser confirmado na passagem a seguir:

E aqueles dentre os jovens que forem valentes no combate ou em qualquer outro lugar, deve dar-lhes, entre outras honrarias e prêmios, liberdade mais ampla de se unirem às mulheres, a fim de que se haja o pretexto para se gerar o maior número possível de filhos de homens dessa qualidade[16].

Já em Moisés, percebe-se que à liderança cabe apenas o papel de prescrever leis que tornem o casamento lícito. Cada homem é, portanto, responsável por escolher a sua própria esposa (Gn. 2:24; Dt. 24:1-4), embora acontecessem situações onde a havia a interferência da família. Contudo, a discordância mosaico-platônica vai além nesse ponto, uma vez que o filósofo grego afirma que “a lei permitirá uniões entre irmãos e irmãs se a tiragem de sorte se inclinar para este lado e se a Pítia[17] aprovar”[18]. Moisés, por sua vez, não admite o casamento entre parentes próximos, principalmente entre irmãos. Conforme Levítico 18, os casamentos seguintes são considerados ilícitos: pai com filha, mãe com filho, irmão com irmã, avó com neto, sobrinho com tia, sogro com nora, cunhados, etc.

CONCLUSÃO

Depois dessa breve análise, só é possível uma conclusão: a de que não há qualquer comunhão entre o Sinai e a Academia. Infelizmente, muitos pensadores cristãos não perceberam a distância entre Platão e Moisés. Justino, o Mártir, por exemplo, afirmou que o platonismo em pouco diferia do cristianismo. Clemente de Alexandria foi além, chegando a defender que a filosofia platônica havia sido uma espécie de testamento para os gregos. Na verdade, o sangue fétido do platonismo penetrou nas veias do cristianismo desde muito cedo, apodrecendo boa parte da teologia cristã. Para ser mais exato, esse líquido putrefato ainda não foi expelido da doutrina cristã. Mas ele precisa ser extraído, sob a pena destruir a essência da ética cristã. Não que seja impossível o relacionamento entre teologia e filosofia, entre fé e razão. A questão é que não há filosofia mais anti-mosaica, e, consequentemente, mais anticristã do que o platonismo.


NOTAS:

1. PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 155.

2. PLATÃO. op. cit. p. 159.

3. PLATÃO. Criton. In: Os pensadores. São Paulo: Nova cultural, 2004. p. 110.

4. PLATÃO. Fédon: diálogo sobre a alma e a morte de Sócrates. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 81.

5. PLATÃO. op. cit. p. 40.

6. PLATÃO. op. cit. p. 44.

7. PLATÃO. A República. p.128.

8. PLATÃO. op. cit. p. 138.

9. PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 70.

10. PLATÃO. Banquete. São Paulo: Martin Claret, 2001. p.140.

11. PLATÃO. A República. p. 78.

12. PLATÃO. Fédon. p. 31.

13. PLATÃO. A República. p.133.

14. Platão. op. cit. p. 175.

15. PLATÃO. op. cit. 103.

16. PLATÃO. op. cit. p. 156.

17. Sacerdotisa de Apolo que pronunciava oráculos em Delfos.

18. PLATÃO. op. cit. p. 156.


Postado por J. Marques