sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

LIÇÕES SOBRE O AMOR EM CANTARES: O PODER DO AMOR

As figuras empregadas por Salomão para falar do amor enquanto um vínculo poderoso são ricas em detalhes, algo que, em virtude de sua beleza estilística, desafia a sensibilidade de qualquer poeta. Há no texto, dois grupos de metáforas, cada um expressando um aspecto do poder do amor conjugal. O primeiro grupo – morte, sepultura e fogo – apontam para o poder incontrolável e devastador do amor. Nessa seqüência de figuras há aquilo que os estudiosos da literatura sapiencial denominam paralelismo gradativo. A morte indica o fim da existência, a sepultura refere-se à autenticação pública da morte e o fogo é usado em várias passagens para representar a destruição definitiva dos maus. A destruição, portanto, vai ganhando intensidade na medida em que as figuras são apresentadas. O que nos chama a atenção nesse texto é fato do sábio empregar figuras de poder destrutivo para representar o caráter poderoso do amor conjugal. Tanto a morte quanto a sepultura e o fogo são elementos ligados à destruição das coisas. A morte representa a destruição da existência terrena, a sepultura representa a destruição do corpo e o fogo a perdição final dos homens maus. Por que o sábio lança mão dessas figuras para ilustrar o amor?

Quando olhamos rapidamente as páginas da literatura, observamos que, ao longo da história, os poetas empregaram a figura do sol, do mar, das estrelas e até do próprio Deus para expressar o poder que envolve o amor conjugal. Em meu conhecimento extremamente limitado da literatura mundial, não me lembro de um poeta, além de Salomão e de Camões que afirmou que o amor é um fogo que arde sem se ver, que tenha recorrido às figuras da morte, da sepultura e do fogo para expressar o caráter poderoso do amor. Qual seria a razão do sábio ter empregado um procedimento tão radical? Porque será que ele não diz que o amor é como a flor que nasce em terra seca, como as ondas do mar que marcham incontroláveis ou como o sol que dispersa as trevas noturnas?

Em primeiro lugar, deve ser dito que Salomão não está querendo dizer que o amor conjugal é um sentimento necessariamente destrutivo. Na verdade, ao empregar estas metáforas, ele deseja ressaltar o grande poder que está associado ao amor conjugal. Por isso ele recorre a figuras que possuem um conteúdo expressivo tão forte, tão contundente. Além disso, é como se ele quisesse nos lembrar que o amor, quando vivenciado de forma equivocada, pode ser dotado de um potencial destrutivo. O amor conjugal não é necessariamente destrutivo, mas, em virtude do seu imenso poder é capaz de tornar-se destrutivo, pode causar danos irreparáveis aos amantes que usufruírem-no da forma incorreta. Usado de forma incorreta o amor pode se transformar em ciúme possessivo, em sensualidade, adultério e pornografia. Certamente, os publicitários conhecem esse pode do amor quando exploram de forma apelativa a nudez em suas campanhas publicitárias. Ninguém em sã consciência negará que no amor conjugal há o elemento instintivo e impulsional. Se este elemento não for controlado o poder do amor pode se tornar destrutivo. Na verdade, não controlar esse elemento significa vivenciar o amor conjugal de forma equivocada. Pensemos no exemplo de uma esposa que esconde o uniforme do esposo porque não deseja que ele vá jogar bola com os amigos, ou o esposo que não aceita o fato de sua esposa trabalhar fora, ou mesmo aquele que, em um ato extremo, é capaz de tirar a vida da pessoa que afirma amar. Todos estes exemplos apontam, em maior ou menor grau, para o poder destrutivo do amor conjugal, uma forma equivocada de amor conjugal, para ser mais preciso.

O segundo grupo de metáforas empregado por Salomão é ainda mais forte em seu conteúdo expressivo. Neste trecho ele emprega a figura do fogo em diferentes graus de intensidade. Com isso o autor do Cântico dos cânticos tenciona falar dos graus de poder do amor. O sábio começa a sua seqüência de metáforas comparando o amor a uma brasa. O termo hebraico gahelet empregado nesta passagem aplica-se ao carvão de madeira usado para cozinhar, aquecer e queimar incenso. As brasas ardentes podem aplicar-se figuradamente à destruição do herdeiro único de uma família (II Sm. 14:7), ao caráter destrutivo das contendas (Pv. 26:21) e ao juízo divino (Sl. 120:4; 140:10).

O segundo elemento apresentado no texto é a figura da labareda. As labaredas são do Senhor como se o sábio quisesse enfatizar a procedência divina do amor conjugal e, ao mesmo tempo, o seu caráter sacrificial. A expressão “labaredas do Senhor” nos remete às oferendas que eram queimadas a Deus. Trata-se do fogo que adquiriu maior intensidade. É fácil apagar o fogo de uma brasa, basta que lancemos um pouco de água sobre ela. Às vezes, nem é necessário lançar água sobre ela, basta tirá-la do braseiro. O fogo que assumiu a forma de labareda, entretanto, em virtude de sua maior intensidade, é muito mais difícil de ser apagado. Para termos uma idéia disso basta nos lembrarmos daquelas reportagens sobre incêndios florestais. Sempre que elas ocorrem, os bombeiros têm muita dificuldade para controlá-la e só conseguem fazê-lo depois de gastar muito suor e água.

O terceiro estágio do fogo empregado por Salomão não aparece de forma explícita como os anteriores, mas é possível deduzi-lo através da expressão empregada pelo sábio. Segundo ele, as muitas águas não poderiam apagar o amor nem os rios afogá-lo. Que estágio do fogo nem mesmo as águas de um rio podem apagar? Trata-se do vulcão. Em um verdadeiro espetáculo da natureza, quando os vulcões entram em erupção, as suas larvas são capazes de penetrar as águas do mar e manter acesa a sua chama ardente. No vulcão o fogo atinge o seu mais alto grau de intensidade e calor, intensidade à qual nem mesmo o frio das águas podem deter. Com essa figura o paralelismo gradativo do sábio atinge seu clímax. É fácil apagar o fogo em forma de brasa, quando esse fogo se converte em labaredas a tarefa se torna mais difícil, quanto ele se torna vulcão, é praticamente impossível apagá-lo.

A figura empregada por Salomão fala de uma forma muito profunda sobre os graus de poder do amor. Há momentos em que ele pode ser comparado a uma brasa, às vezes ele ganha a intensidade de uma labareda, às vezes, de um vulcão. Esse princípio possui implicações bastante decisivas para o relacionamento conjugal. A principal delas consiste no fato que, quanto maior for a intensidade do amor, mais difícil será para desfazer o laço conjugal. Casamentos que se desfazem com facilidade é porque o seu amor é apenas uma brasa que pode ser apagada facilmente pelas frias águas dos problemas diários. Quando o amor é como o fogo de um vulcão, nem mesmo os mares de tribulações que se arremessam contra o casal, podem apagar ou destruir o amor. Pelo contrário, ele sempre sai dos problemas mais fortalecido.

Como deve ser o processo gradativo do poder do amor? Muitas pessoas têm a seguinte compreensão do amor conjugal: quando ele começa, na época do namoro , é tão intenso e incontrolável como as larvas de um vulcão. Vem o casamento e ele perde a intensidade inicial e se transforma em uma labareda. Após os dez anos de casamento, às vezes menos, quando passa a lua de mel e surgem os filhos, ele se transforma em uma simples brasa cuja intensidade, nem de longe, lembra aquele ardor inicial. Essa concepção é totalmente equivocada. O verdadeiro amor conjugal realiza o movimento inverso. Ele começa como uma brasa, evolui para uma labareda e depois ganha a intensidade de um vulcão. È claro que não estamos restringindo o amor conjugal apenas a sua dimensão física. Já foi falado que o simples apetite físico que encontra realização no ato sexual é apenas um dois componentes do amor conjugal. Há também neste sentimento sublime um profundo prazer de ordem espiritual. Na verdade, o componente físico tende a perder a intensidade com o passar do tempo. Os casais mais idosos sabem muito bem do que estou falando. A perda de intensidade do componente físico do amor conjugal não significa necessariamente que ele está perdendo a intensidade. Na verdade, na medida em que vai se tornando cada vez mais espiritual, ele vai adquirindo maior intensidade, e, quanto mais espiritual o amor conjugal se torna, maior se torna o seu poder. É verdade que, em virtude dos problemas aos quais o relacionamento conjugal está exposto, o casal passará por momentos em que o fogo do amor terá a sua intensidade diminuída, mas ele não demorará em ser restaurado à sua harmonia inicial.

Postado por J. Marques

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

LUTERO E A ESCRAVIDÃO DA VONTADE - PARTE IV

IV. Lutero conclui fazendo o seguinte apelo a Erasmo:


Agora, meu Erasmo, peco-te, por Cristo, que cumpras o que prometeste; pois prometeste ceder ao que ensina algo melhor. Esquece a consideração de pessoas! Admito que és um grande homem e dotado por Deus com muitos dos mais nobres dons, para não falar dos demais, de teu talento, erudição e da eloqüência quase milagrosa. Eu, no entanto, nada tenho e nada sou, a não ser que quase me possa gloriar de ser cristão. Além disso elogio e gabo muito em ti o seguinte: és o único que atacou a questão em si, isso é, a questão essen¬cial, e näo me fatigaste com aqueles assuntos secundários sobre o papado, o purgatório, as indulgências e outras coisas deste tipo que mais são frivolidades do que questões [sérias], pelas quais ate agora quase todos tentaram caçar-me em vão. Tu como único reconheceste o ponto central de toda [controvérsia] e pegaste a coisa pela gravata; por isso te agradeço de coração. Pois com este tema gosto de ocupar-me muito mais, sempre que as circunstâncias e o tempo o permitem. Se aqueles que ate agora me agrediram tivessem feito isso, se ainda o fizessem aqueles que apenas insistem em novos espíritos, em novas revela¬cões, teríamos menos sedições e seitas, e mais paz e concórdia. Mas foi desta maneira que Deus castigou nossa ingratidão por meio de Satanás. Se, porém, não podes tratar desse assunto de forma diferente do que o fizeste na Diatri¬be, desejaria muitíssimo que te satisfaças com teu dom e que te dediques a cul¬tivar, enobrecer, fomentar as ciências e as línguas, como o vinhas fazendo até agora com grande sucesso e louvor. Com este trabalho também prestaste um grande serviço a mim e confesso que te devo muitas coisas, e, por certo, nes¬te sentido, te tenho muita estima e sincera admiração. Deus ainda não quis até agora que estivesses a altura desta nossa causa. Peco-te, porém, entender que nada disso é dito com arrogância. Rogo, porém, que em futuro próximo o Se¬nhor te faça tão superior a mim neste assunto como és superior a mim em to¬das as demais coisas. Pois näo é nenhuma novidade se Deus instrui a Moisés por meio de Jetro e ensina a Paulo por meio de Ananias”. Quando, porém, dizes que seria errar o alvo de longe se tu ignorasses a Cristo, julgo que tu próprio deves ver como está a situação. Pois nem todos irão errar se erramos tu e eu. E Deus que é anunciado admiravelmente em seus santos, para que consideremos santos aqueles que estão mais distantes da santidade. E visto que és humano, pode acontecer com facilidade que não entendas de forma correta ou não examines com suficiente diligência as Escrituras e os ditos dos pais, sob cuja orientação crês alcançar o alvo. Isso o denun¬cia com clareza suficiente o fato de escreveres que não fazes assertivas, mas apenas comparações. Assim não escreve a pessoa que tem uma visão profun¬da do assunto e o entende corretamente. O Senhor, porém, de quem é a causa que defendo, te ilumine e faça de ti um vaso para honra e gloria. Amém.

Postado por Elias Lima

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

LIÇÕES SOBRE O AMOR EM CANTARES: A IDENTIFICAÇÃO

O texto de Cantares 8:6,7, comumente citado em convites de casamento e em cerimônias nupciais, é aquele que melhor define a natureza do amor conjugal em toda a Escritura. Apenas nesse texto são encontrados três os elementos indispensáveis à compreensão do sentido do Eros, termo empregado por C. S. Lewis para identificar o amor conjugal.

O amor conjugal é, antes de tudo, um laço que implica em identificação entre os amantes. Salomão recorre à metáfora do selo para falar da identificação que o amor produz nos cônjuges. Também conhecido como sinete, o selo é empregado desde tempos remotos para indicar a autenticidade de um documento ou mensagem, comprovando assim a identificação entre ela e seu emissor. O selo era uma espécie de confirmação pública de que ele era responsável pelo conteúdo emitido. O exemplo bastante claro dessa prática no Antigo Testamento pode ser encontrado no episódio da morte de Nabote. Nesta ocasião, a rainha Jezabel envia cartas aos anciãos e nobres de Israel, selando-as com o sinete de Acabe (II Re. 21:8). Na Antiguidade, era comum os reis e nobres usarem como selo os seus próprios anéis. Quando os servos eram enviados, por exemplo, a transmitir uma mensagem de seus senhores, eles costumavam levar os anéis para confirmar a identidade entre este comunicado e o seu suposto emissor. Com a presença do anel ninguém ousaria questionar a autenticidade daquela mensagem.

O autor do Cântico recorre à figura do selo exatamente para falar da identificação que existe no amor conjugal. Essa identificação é tão profunda que o sábio extravasa na aplicação da metáfora. O selo não é colocado apenas sobre o braço, mas sobre o coração. O braço, provavelmente um sinônimo poético para mão, representa o componente físico, já o coração, enquanto núcleo da afetividade humana, aplica-se ao elemento espiritual. Isso comprova que há no amor conjugal uma dupla identificação: interna e externa. Para utilizar outros termos, uma identificação espiritual e física ao mesmo tempo. O amor conjugal vai do simples apetite físico ou sexual ao mais elevado prazer espiritual. Sem a identificação física o Eros se transforma em sadismo e sem a identificação espiritual ele se converte em auto-erotismo. Amar é, portanto, identificar-se com a pessoa amada, é desejar que os outros nos vejam através dela. De uma forma misteriosa, o amante utiliza a amada como uma espécie de selo em seu próprio corpo, e o mesmo faz a amada em relação ao amante.

Algumas pessoas costumam empregar um princípio da física segundo o qual os opostos se atraem para falar do amor conjugal. Na verdade, o grande mérito do amor não está em atrair os amantes, mas em manter unidos aqueles que por ele são atraídos, e isso só é possível por meio da identificação. A simples oposição pode ser empregada como força atrativa, mas também pode ser empregada como instrumento de separação. Sem a identificação, portanto, o atrito vira conflito e a oposição vira separação. Isso serve como uma espécie de conselho para aqueles que pretendem partilhar o amor conjugal. É preciso que eles busquem pessoas com as quais possam estabelecer um vínculo de identidade. Se há algum casal que já está partilhando do amor conjugal e não consegue encontrar identificação entre ele e a pessoa amada, ele precisa descobrir o mais rápido possível algo que lhe identifique com a pessoa amada, caso contrário o seu relacionamento estará ameaçado.

O princípio da identificação tem implicações bastante sérias para o relacionamento entre os casais. Em primeiro lugar, ele ensina que aquele que ama desejará sempre associar-se publicamente à pessoa amada. Há uma prática muito comum entre casais de namorados que consiste em imprimir em blusas a foto da pessoa amada. Esta foto é quase sempre acompanhada por frases poéticas e declarações amorosas. O namorado sente-se feliz e até um pouco orgulhoso em poder trajar esta roupa. É como se ele quisesse declarar a todos que está ligado a essa pessoa, que se identifica com ela. A foto da pessoa amada é usada como uma espécie de selo. Infelizmente, esta prática não é vista com a mesma freqüência entre pessoas casadas. Entre casais que já ultrapassaram os dez anos de casamento, a foto da pessoa amada é geralmente substituída pela foto dos filhos. Essa é uma das primeiras evidências que o vínculo de identificação que marca o amor conjugal está se perdendo. No último estágio dessa tendência danosa, o cônjuge sentirá vergonha de associar-se ao seu companheiro, evitará, por exemplo, passear com ela em ambientes públicos ou apresentá-la aos amigos de trabalho. Casais que chegaram a este estágio certamente desconhecem que o amor conjugal é marcado pela identidade entre os amantes. Não sabem que aqueles que são envolvidos por esse sentimento sublime desejarão ardorosamente publicar para todos a sua ligação com a pessoa amada. Desculpem-me a franqueza e o rigor das palavras, mas há muitos esposos que tratam as suas esposas como prostitutas. Não no sentido de que pagam para possuir seus corpos, mas no sentido de que se envergonham dela e querem mantê-las escondidas, ficam embaraçados sempre que precisam comparecer em público com elas. Que fique bastante claro: em um relacionamento dessa natureza os cônjuges desconhecem a essência do amor conjugal, desconhecem o poder desse laço de identificação que une os amantes.

Em segundo lugar, o princípio da identificação implica em valorização. Aquele que ama vê a pessoa amada como algo precioso. Essa consciência muda drasticamente o tratamento dos casais entre si. Para recorrer a uma analogia, que mulher, possuindo um colar de pérolas, desejará que ele fique sempre guardado? Na verdade, ela desejará mostrar a todos a sua joia valiosa, por isso, costuma usá-la em ocasiões importantes. Durante a festa, sempre que as pessoas olham para ela e ficam extasiadas com a beleza do seu colar, ela se sente orgulhosa por ser dona de tal joia. Além disso, ela cuidará do seu colar com todo o empenho, considerando que ele é algo precioso para ela. Essa comparação ilustra bem a ideia do amor conjugal. Quem ama vê a pessoa amada com uma joia preciosa. Por esta razão, cuidará dela com todo empenho e dedicação e ficará feliz sempre que as pessoas puderem perceber que eles se pertencem, que estão indissoluvelmente unidos pelo amor, sentir-se-á importante porque pertence a amada e amada lhe pertence.

Por fim, deve ser acrescentado que é o princípio da identificação que garante a unidade do relacionamento conjugal. Somente por meio dele a metáfora “tornar-se uma só carne”, utilizada para representar o casamento, ganha vida. Sem ele pode ser que haja um ajuntamento entre duas pessoas, nunca a sublime e misteriosa unificação conjugal. Eis a razão porque muitos casais estão vivendo sérias crises conjugais: não é que eles sejam incapazes de amar, a razão é que eles desconhecem as implicações do princípio de identificação que caracteriza o amor.



Postado por J.Marques