terça-feira, 25 de agosto de 2009

REFLEXÕERS SOBRE O ABANDONO DA MORAL

A edição brasileira de The abolition of man, publicada pela editora Martins Fontes, trás como subtítulo Reflexões sobre a educação, especialmente sobre o ensino de inglês nas últimas séries. A obra faz parte de uma coletânea de títulos de C. S. que foram publicados por essa editora. As outras são Cristianismo puro e simples, Cartas de um diabo a seu aprendiz e Os quatros amores. Nesse opúsculo, como sugere o subtítulo da edição brasileira, o pensador irlandês analisa as conseqüências a longo prazo de uma educação que exalta o sentimentalismo e o instinto. Em certo sentido, a obra é surpreendente, pois, mesmo sendo pouco volumosa, consegue tratar o assunto com bastante profusão.

A obra está dividida em três partes. No primeiro capítulo, o autor demonstra que a finalidade dos novos princípios educacionais que estão sendo propagados é formar homens sem peito. O peito, segundo a análise do autor de As crônicas de Nárnia, é o elemento responsável pela ligação entre o homem cerebral e o homem visceral, entre o intelecto e o instinto. Sem esse elemento, o homem seria ou um espírito ou um animal, perderia uma das características essenciais de sua humanidade. Lewis principia sua análise fazendo alusão a um suposto livro que lhe foi enviado e que, segundo ele, contem os princípios dessa nova educação. Para preservar a identidade dos autores, Lewis denomina-os Gaius e Titius e a referida obra de O livro verde. Segundo esses autores, quando um homem afirma, por exemplo, que uma cachoeira é sublime, ele está dizendo apenas que possui sentimentos sublimes. Em outras palavras, ele não está emitindo um juízo de valor, mas demonstrando que é capaz de ser afetado por uma beleza natural. Para o pensador irlandês, essa posição levaria a absurdos evidentes. “Aceitá-la seria o mesmo que dizer que a frase ‘você é desprezível’ significa ‘eu tenho sentimentos desprezíveis” (p. 3). No desenrolar desse capítulo, o autor de Cristianismo puro e simples apresentará críticas severas ao livro verde. Na página seis, por exemplo, o pouco valor literário da obra é denunciado. Na página seguinte, ele acrescenta que, através dessa obra, as crianças não aprenderão nada de literatura. Como se não bastasse, os efeitos para a formação dessas crianças serão danosos. Elas desenvolverão “a crença de que todas as emoções associadas a lugares são em si mesmas contrárias a razão e por isso desprezíveis”. (p. 9). Lewis fundamenta a sua crítica demonstrando como O livro verde contraria a própria finalidade da educação. Já nos dias de Aristóteles essa tarefa tinha como alvo levar o aluno a gostar e desgostar daquilo que era certo gostar e desgostar. A educação propagada por Gaius e Titius, baseada no sentimentalismo e no instinto, atrofiava o senso moral dos alunos. No final do capítulo, Lewis acrescenta à sua crítica certa dose de ironia. Segundo ele, guiados pelos princípios educacionais do livro verde, “produzimos homens sem peito e esperamos deles virtude e iniciativa, caçoamos da honra e nos chocamos em encontrar traidores entre nós, castramos e ordenamos que os castrados sejam férteis”.

Lewis inicia o segundo capítulo em tom bastante ameaçador. Segundo ele, “o resultado da educação feita nos moldes do Livro verde será inevitavelmente a destruição da sociedade que a aceitar” (p. 25). De fato, nesse capítulo, o pensador irlandês concentrará sua crítica na conseqüência principal dessa nova educação: o desenvolvimento de uma moral subjetiva. Analisar todas as teorias de moral subjetiva seria uma tarefa bastante enfadonha e que certamente fugiria ao propósito da obra. Sendo assim, o pensador irlandês elege o instinto para alvo de sua crítica. Na sequência, o autor de O problema do sofrimento apontará pelo menos quatro problemas em uma moral baseada no instinto. Lewis baseia a sua argumentação crítica na natureza do instinto. Em primeiro lugar, marcado quase sempre por um desejo irracional de satisfação. Em segundo lugar, o caráter insaciável do instinto exige que um instinto seja sempre sucedido por outro, o que, logicamente, levaria ao absurdo de uma série infinita de instintos. Em terceiro lugar, há instintos variados, os quais, em muitas situações, estão em guerra entre si. Por conseguinte, argumenta o pensador irlandês, “dizer que devemos obedecer ao instinto é como dizer que devemos obedecer às ‘pessoas’. As pessoas dizem coisas diferentes, e assim também os instintos”. (p. 34). Por fim, o mero instinto não é capaz de realizar um julgamento parcial por conta do seu componente afetivo. Segundo uma ilustração empregada pelo próprio Lewis, se o juiz é uma das partes julgadas, o seu julgamento não possui nenhuma validade.

Ainda no capítulo dois, Lewis introduz o conceito de Tao. Por Tao ele compreende a consciência moral presente no homem, aquilo que outros poderiam designar de lei natural, moral tradicional, primeiros princípios da razão prática, etc. A nova educação apresentada pelo Livro verde constitui-se em um ataque direto ao Tao. Há, não obstante, contradições evidentes na proposta apresentada pelos inovadores. Em primeiro lugar, eles atacam o Tao, mas para isso, precisam recorrer aos valores encontrados no próprio Tao. De fato, conclui Lewis, “se o Tao sai de cena, saem com ele todas essas concepções de valor”. (p. 40). Em segundo lugar, uma revolução no interior do Tao é algo que não encontra base histórica. Isso porque, segundo a análise do pensador irlandês, nunca houve e nem haverá um valor radicalmente novo na história do mundo. Quando há inovações, elas partem de fragmentos do próprio Tao. “É de dentro do Tao que emerge a única autoridade para modificá-lo”. (p. 45). De outro modo, é preciso compreender o Tao para poder modificá-lo, e só compreende quem o pratica. Em terceiro lugar, uma rebelião contra os princípios do Tao é uma espécie de rebelião dos galhos contra a árvore. Sem perceber, os rebeldes estão se auto-destruindo. Por fim, para Lewis, seria tão absurdo tentar criar valores radicalmente novos que seria o mesmo que tentar criar uma nova cor primária ou um novo sol e um novo céu no qual ele se mova.

No terceiro capítulo três Lewis fala da abolição do homem propriamente dita. O curioso dessa abolição é que ela surge exatamente em um momento em que o homem, guiado pela ciência e pela razão, afirma ter conquistado a natureza. Segundo o pensador irlandês, pelo fato de ter abandonado o Tao, a conquista final do homem tornou-se a sua própria abolição. De fato, há uma relação intrínseca entre a humanidade e o Tao. De modo que, sem esse princípio, o homem tem parte de sua essência subtraída. Nas palavras do autor de Anatomia de uma dor, “só há duas possibilidades: ou somos espíritos racionais obrigados para sempre a obedecer aos valores absolutos do Tao, ou então não passamos de uma mera natureza a ser manuseada e esculpida em novas formas para o deleite dos mestres, que por sua vez serão motivados unicamente por seus impulsos naturais” (p. 69). Lewis deixa claro que não e contra o avanço científico. De fato, a sua preocupação é com um conhecimento que esteja relacionado ao Tao. Segundo ele, quando o laço entre ciência e moral for dissolvido, o conhecimento também perecerá e o processo de abolição do homem terá sido completado.

No final da obra Lewis apresenta um apêndice onde são alistados fragmentos de vários códigos de ética. O seu objetivo com isso é demonstrar o caráter universal da lei natural (Tao). Obras como O livro dos mortos, Os analectos, Críton, Instituições, De officiis, entre outras, são mobilizadas pelo pensador irlandês. Princípios como justiça, caridade, verdade, honestidade, misericórdia e magnanimidade, são encontrados nos grandes códigos morais ao longo da história humana.

A obra A abolição do homem apresenta uma análise contundente das conseqüências de uma moral baseada na subjetividade e no instinto, bem como o abismo que espreita o homem contemporâneo, por ter este último abandonado aquilo que lhe prescreve as leis do Tao, por ter abandonado a moral objetiva e mergulhado no subjetivismo. Deve ser reconhecido que Lewis demonstra bastante profusão no tratamento do assunto. O seu conhecimento da literatura moral, seja ela oriental ou ocidental, é invejável. O referencial bibliográfico do pensador irlandês é tão amplo que ao nos depararmos com determinadas obras citadas por ele, por um momento, ficamos surpresos por saber que elas existem.

Há, contudo, algumas deficiências na obra que precisam ser destacadas. Do ponto de vista estrutural, a falta de elementos transitivos entre os capítulos compromete a coerência interna da obra. De fato, é só com muita dificuldade que é possível perceber a relação entre os capítulos. Por um momento podemos ser levados a pensar que, originalmente, o autor publicou os capítulos como artigos independentes. Essa possibilidade é fortalecida quando se constata que o livro não apresenta uma introdução e muito menos uma conclusão.

No que concerne ao conteúdo da obra, deve ser dito que Lewis foi infeliz ao eleger o conceito de Tao para se referir ao princípio da moralidade. O Tao é um conceito típico das religiões orientais, principalmente do Taoísmo, de modo que, aquele que desejar fazer uso dele, deverá, antecipadamente, justificar a sua adoção. Deverá demonstrar com bastante clareza em que sentido empregará o conceito em sua discussão. Caso contrário, o leitor será levado a pensar que o autor aceita todas as implicações de tal conceito. Lewis não foi cuidadoso em relação a isso. No Tao te Ching, o Tao se confunde, a própria idéia de Deus. Estaria C. S. Lewis de acordo com esse pensamento? Mesmo na ética confuciana, de onde Lewis parece extrair o conceito do Tao, essa confusão está presente.

REFERÊNCIA:

LEWIS, C. S. A abolição do homem, ou, Reflexões sobre a educação, principalmente sobre o ensino de inglês nas últimas séries. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


Postado por J. Marques

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