domingo, 24 de fevereiro de 2008

CRISTIANISMO ASCÉTICO: ANTECEDENTES, DESENVOLVIMENTO E ATUALIDADE

INTRODUÇÃO

A palavra ascetismo vem do grego “askesis”, e significa prática, exercício, treinamento. Por conta disso, a palavra era usada, geralmente, para aludir aos exercícios e disciplina dos atletas. Os filósofos gregos aplicavam o termo à disciplina moral. Os seguidores da escola pitagórica e alguns da neoplatônica praticavam o ascetismo. Para estes filósofos, a prática ajudava no avanço da alma. Os cínicos se valiam do ascetismo para protestar contra os hábitos exagerados no comer, no vestir e nas condições de vida. Segundo eles, esta maneira de viver era um dos meios para se obter a liberdade. Um dos cínicos mais famosos foi Diógenes de Sinope, que vivia dentro de um barril.

Mas o asceticismo não encontrou terreno apenas na filosofia. No hinduismo, os terceiro e quarto estágios da vida eram a renúncia, abandono da vida familiar e a vida de mendicância, como meio de purificação, para melhor progredir no caminho da salvação. O judaísmo também cultivou a prática ascética, principalmente no campo alimentar. Algumas vezes estas práticas eram temporárias e visavam casos especiais, como quando o povo de Israel teve de abster-se de relações sexuais, antes da outorga da lei ( ÊX. 19:15).

O cristianismo também sofreu influência do ascetismo. Como e quando isto aconteceu? A prática ascética está presente no cristianismo hoje? São perguntas que iremos responder no presente artigo.

1. ANTECEDENTES

Quase todas as religiões receberam algum tipo de influência externa. Com o cristianismo, não foi diferente A prática ascética na igreja primitiva foi resultado de influências religiosa e filosófica. A influência filosófica ficou por conta do gnosticismo. Segundo os gnósticos, a matéria era inferior ao espírito. Este pensamento dividia o grupo entre libertinos e ascetas. Se a matéria é inferior ao espírito, não importa o que é feito no corpo, concluíam os libertinos. Desta forma, esta ala do gnosticismo levava uma vida totalmente desregrada, abusando da sensualidade e dos prazeres da carne. “Já para os gnósticos ascetas, o corpo físico era um obstáculo para a vida santa, devendo ser subjugado a todo custo”1. Se o corpo não fosse privado dos desejos carnais, o espírito não poderia ser aperfeiçoado.

Na igreja em Colossos o gnosticismo é bem visível e, consequentemente, o ascetismo estava presente ali. É possível notar claramente o apóstolo Paulo combatendo este estilo de vida, quando o chama de simples preceitos e doutrinas de homens ( Cl. 2:22 ). Nesta passagem o apóstolo alista algumas das proibições que caracterizavam o ensino ascético. Entre elas, o não tocar em certos objetos e abstinência de certos alimentos. Mas as proibições não acabavam por aí. Elas se estenderam até a área sexual, exaltando o celibato e desprezando o casamento ( I Tm 4:3 ).

Mas o gnosticismo não foi o único responsável pela prática ascética dentro do cristianismo, em seus primórdios. O judaísmo também contribuiu. Este, nos dias de Cristo, havia adotado o ascetismo como norma, mais até do que se vê no Antigo Testamento. Os fariseus foram os mais radicais na prática ascética, e o jejum era o prato principal do seu menu. Quando alguns fariseus tinham reconheceram Jesus como o Messias, fazendo assim parte da Igreja primitiva, a perspectiva era de uma grande confusão. Foi o que aconteceu. Alguns dos fariseus cristãos acreditavam que os gentios tinham que cumprir as leis judaicas para serem salvos ( At. 15:1). Este pensamento resultou no primeiro concílio da Igreja, pois Paulo, apesar de ter sido fariseu, discordou daquela posição. O parecer da Igreja foi favorável a Paulo, mas parece que os judaizantes não se conformaram com aquela decisão, pois os vemos atuando na região da Galácia ( Gl. 1-6 ) e em outros lugares ( Fp.3:2 ). Portanto, a prática ascética no cristianismo primitivo foi motivada tanto pelo judaísmo quanto pela filosofia gnóstica.

2. DESENVOLVIMENTO

O cristianismo ascético não se limitou ao período apostólico. No segundo século, o montanismo praticou e propagou um rigoroso ascetismo dentro da Igreja. Entre as proibições estava a de não se casar novamente se um dos cônjuges morresse. “Muitos jejuns eram feitos, e a própria alimentação deveria ser frugal”2. “Tertuliano, um dos maiores pais da Igreja, tornou-se montanista, reforçando ainda mais a prática ascética”3.

Em meados do terceiro século, foi o maniqueísmo que se encarregou de exaltar o ascetismo no meio cristão. Semelhante ao gnosticismo em alguns pontos, este sistema teológico-filosófico foi uma combinação de pensamento cristão, zoroastrismo e outras idéias religiosas orientais. A salvação acabou se tornando na liberação da alma de sua escravidão à matéria. A vida ascética era o meio pelo qual se chegava àquela libertação de modo completo. O maniqueísmo ascendeu o ascetismo a uma altura “que chegou ao ponto de ver o instinto sexual como mal e enfatizar a superioridade do celibato”4. Ainda no terceiro século, o asceticismo se valeu do neoplatonismo, que difundia a filosofia de que o objetivo do universo era a reabsorção na essência divina, de onde tudo viera. Os sentidos podiam ser liberados do presente físico pela contemplação das obras naturais e artísticas. Orígenes foi um propagador das idéias neoplatônicas. “Ele mesmo levou uma vida ascética rigorosa que incluía, por exemplo, dormir em uma tábua nua”5.
Apesar de encontrar solo fértil em filosofias errôneas, foi por causa da história que o asceticismo cresceu. Quando se fala em história, na verdade, deve-se ter em mente um fato histórico, a saber, o Edito de Milão declarado pelo imperador Constantino em 313 d.C. Com a conversão do imperador romano, as coisas mudaram radicalmente para a Igreja. Como diz Justo Gonzalez, “a igreja perseguida passou a ser a igreja tolerada”6. Aquela tolerância religiosa não agradou a todos, pois o caos era transparente. “A porta estreita que Jesus tinha falado se tornara tão larga que uma multidão se apressava em passar por ela. O joio crescia com o trigo e ameaçava sufoca-lo”7. Como ser cristão naquela situação? Não havia mais perseguição para atestar a profissão de fé. Além disso, a Igreja se unia aos poderes do mundo. O luxo e a ostentação se apossavam dos altares cristãos e o caminho estreito se transformara em uma larga avenida. Como ser testemunha do crucificado, daquele que não tinha onde reclinar a cabeça, quando os líderes da Igreja deliciavam-se em mansões luxuosas?

A resposta de muitos foi instantânea: “fugir da sociedade. Abandonar tudo, subjugar o corpo e as paixões que davam ocasião à tentação”8. Surgia então o ascetismo monástico cristão, uma tentativa de diferenciar o cristianismo frouxo e mundanizado da época. A autonegação e o isolamento se tornaram as marcas de um verdadeiro cristão. Entre aqueles que viveram solitária e asceticamente no quarto século, pode-se mencionar Antônio. Ele despojou-se de uma herança para se dedicar à vida ascética de contemplação. A história da Igreja registra alguns casos inacreditáveis de ascetismo. Um deles é o de Simão Estelita ( 390-459 ). “Ele passou a maior parte de sua vida no topo de uma pilastra. Sua comida era entregue a ele dentro de uma cesta por alguns fiéis seguidores. Em seu esforço de escapar dos males mundanos, tornou-se um símbolo que atraiu multidões de peregrinos por vários anos”9.

No quinto século, a prática continuava crescendo nas fileiras do cristianismo. Um exemplo disto é Benedito de Núrsia. “Quando tinha aproximadamente vinte anos de idade, Benedito se retirou para viver sozinho em uma caverna, onde se dedicou a um tipo de vida extremamente ascética”10. Certa vez se lançou numa moita de urtigas porque vinha sendo tentado pela imaginação de uma mulher formosa, que ele tinha visto anteriormente. Depois de se revolver ali durante muito tempo, saiu todo ferido. A partir de então, segundo ele, nunca voltou a ser tentado de maneira igual. São Benedito reuniu um grupo de discípulos e fundou o mosteiro de Montecasino, onde instituiu a Regra11. Comparada ao ascetismo praticado por alguns monges do Egito, A Regra foi um modelo de ascetismo moderado.

Nos séculos V e VI o asceticismo foi divulgado no meio cristão em decorrência da literatura ascética irlandesa de cunho penitencial. Estes escritos influenciaram a cristandade latina de uma forma que o cristianismo se tornou em uma religião de méritos.

Durante a Idade Média, o ascetismo viveu sob a sombra do ensino de que as obras do homem poderiam ser divididas em naturais e espirituais. E apenas aquilo que era espiritual agradava a Deus. “O asceta considerava a vida natural como pecaminosa em si mesma, devendo ser evitada o máximo possível”12. Além da reclusão social, o celibato foi a prática asceta mais expandida no meio cristão naquele período da história. Acreditava-se que este estado era mais santo que o próprio matrimônio.

A Reforma Protestante pôs fim a estes ensinos falsos. Como afirma Boettner: “O protestantismo considerava todas as fases da vida, tanto secular quanto eclesiástica, como sagradas, fazendo tudo parte do plano de Deus e, portanto, devem ser vividas sob a sua bênção e para a sua glória”13.
Martinho Lutero considerou o ascetismo medieval uma distorção do evangelho. Ele escreveu Liberdade do cristão para refutar aquele ensino católico romano. Nesta obra Lutero assevera que o crente tem a liberdade de usufruir de todos os dons e provisões de Deus, e que a autonegação quanto a estas coisas nada tem a ver com a salvação da alma. O reformador, porém, não eliminou o ascetismo espontâneo e discreto. Segundo ele, todos podem jejuar e fazer vigílias para controlar o corpo. Lutero afirmava que aqueles que pensam que podem se tornar piedosos através das obras, só dão valor ao jejum como uma obra, imaginando que são piedosos por muito praticarem essas coisas. No entanto, quebram suas cabeças ou arruínam seus corpos nessas práticas ascéticas.

3. ATUALIDADE

Estaria o asceticismo ainda presente no meio cristão, mesmo depois da Reforma? É o que será constatado a seguir.
O moderno movimento evangélico não tem se libertado de práticas ascéticas. Isso assume uma forma exagerada com o vestuário, regras excessivas acerca da maior parte dos entretenimentos, ou mesmo abstinência de várias comidas. Desta forma, “contrariando a pregação de Cristo, que serve para libertar o homem, alguns grupos religiosos tem apresentado um evangelho que escraviza, com regras do tipo: você não pode praticar esporte, assistir televisão, ir ao teatro, andar de short, ir à praia, cortar o cabelo, usar jóias, batom, esmalte, etc. Caso contrário, perderá a salvação”14.

Assim como na Idade Média, hoje muitos se gloriam de seu ascetismo. Existe daqueles que se exaltam por nunca terem vestido um short ou mesmo ter tocado em uma bola de futebol. Como se isso tivesse algum mérito salvífico ou fosse comprovação de espiritualidade. O fato é que o homem quer, de alguma forma, contribuir com a sua salvação, e pensa que esta escravidão é o meio mais adequado para isso.

Mas o que torna o cristianismo vulnerável à prática ascética hoje? O abandono da verdade. O homem pós-moderno, ao abandonar a verdade, perde o equilíbrio e passa a ser um escravo do exagero, sendo levado a um escapismo inevitável. Uma das facetas deste escapismo é exatamente a porta de entrada para o ascetismo. “Estamos falando daqueles que vivem o amanhã como se não existisse o hoje, e procuram viver o mundo porvir como se não houvesse o mundo aqui e agora”15.

A intenção ou o propósito de ser diferente do mundo dever ser uma máxima para os cristãos, mas esta diferença não deve ser entendida apenas em aspectos externos. Jesus Cristo criticou severamente aqueles que se preocupavam com as coisas exteriores, e não olhavam para o íntimo ( Mt. 23:25,27 ). Não estamos dizendo que todos aqueles que praticam o ascetismo supracitado estejam sendo hipócritas. Muitos são sinceros, mas isto não quer dizer que estejam fazendo a coisa certa. O que acontece é que as verdades bíblicas são distorcidas, levando muitos a acreditarem que a prática ascética vigente seja a maneira correta de viver, de ser diferente do mundo.

CONCLUSÃO

Os cristãos são exortados a abrirem mão de certas coisas, devido à consciência alheia ( II Co. 8:13: Rm. 14:1ss ). Devem ser atletas espirituais, exercendo disciplina e autocontrole, para que se tornem vencedores na corrida espiritual ( I Co. 9:24-27 ), andando no Espírito e controlando a natureza pecaminosa ( Gl.5:17,25 ). Contudo, meros atos externos não têm valor, se desacompanhados pela correspondente virtude no íntimo ( Mt. 6:2, Rm. 14:17 ). Para a liberdade é que fomos chamados, disse Paulo ( Gl. 5:1 ). Porém, não usemos da liberdade para dar ocasião a carne. Isto é libertinagem, que é outro extremo perigoso. Por fim, deve ser reiterado que o cristianismo exalta muito mais as virtudes morais do que os ritos externos.

NOTAS:

1. MATHER, George A e NICHOLS, Larry A. Dicionário de religiões, crenças e ocultismo. São Paulo: Vida, 1993. p. 23.

2. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Apud. CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 83.

3. SCHLESINGER, Hugo; PORTO, Humberto. Dicionário e enciclopédia das religiões. Petrópolis: Vozes, 1927. p. 247.

4. CAIRNS, Earle E. op. cit. p. 81.

5. EUSÉBIO DE CESARÉIA. apud. CAIRNS, Earle E. op. cit. p. 91.

6. GONZALEZ. Justo L. Visão panorâmica da história da Igreja. São Paulo: Vida Nova, 1998. p.12.

7. GONZALEZ. Justo L. Uma história ilustrada do cristianismo: A era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 57.

8. GONZALEZ. Justo L op.cit. p. 59.

9. MATHER, George A e NICHOLS, Larry A. loc.cit.

10. GONZALEZ. Justo. op. cit. p. 41.

11. A regra foi o regimento interno dos mosteiros beneditinos que continha setenta e três breves capítulos.

12. BOETTNNER, Loraine. Catolicismo romano. São Paulo: Editora Batista Regular, 1985. p. 241.

13. BOETTNNER, Loraine. loc. cit.

14. MARQUES. José Lopes. A razão da fé: Escritos de apologética cristã. Ananindeua: SEIFA, p.37. (Apostila não publicada).

15. MARQUES, José Lopes. op. cit. p. 53.
Postado por J. Roberto

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