terça-feira, 13 de maio de 2008

LIÇÕES APRENDIDAS COM GREGOR SAMSA

Gregor Samsa é o protagonista da obra A metamorfose do escritor tcheco Franz Kafka. De acordo com esse clássico da literatura do absurdo, o jovem Gregor, ao despertar certa manhã, descobre que foi transformado em um asqueroso inseto. Ao perceber a estranha mutação, a família de Gregor fica horrorizada e exige que esse ser desprezível fique confinado ao seu quarto para evitar transtornos com a vizinhança. O aparente sentimento de solidariedade da família em relação ao estado do jovem vai se transformando gradativamente em uma atitude de incompreensão, desprezo e hostilidade. Gregor, por sua vez, percebendo-se nesse ambiente indesejado e vendo que o seu aspecto causava repugnância em todas as pessoas à sua volta, permite-se morrer lentamente em seu silencioso e solitário quarto. Com essa trágica e horripilante fábula, Kafka discute o conturbado relacionamento familiar do homem contemporâneo, marcado pela falta de diálogo, incompreensão, solidão e isolamento. Em sentido mais específico, através dessa simbologia, o escritor tcheco revela os conflitos que marcaram o seu relacionamento com seu próprio pai. Relacionamento que, em virtude do autoritarismo do patriarca da família, desenvolveu em Kafka um terrível sentimento de culpa, impotência e medo.

Quando li a obra de Kafka pela primeira vez, cerca de dez anos atrás, lembro-me apenas de ter sido tomado por um imenso sentimento de tristeza e pesar pelo destino trágico do personagem Gregor Samsa. Recentemente, talvez levado pela saudade do meu filho e de minha esposa, resolvi reler o romance kafkaniano. Nessa segunda leitura, não sei se em virtude do meu estado de espírito, propício a uma análise mais intimista e subjetiva, confesso que tive uma experiência singularmente iluminadora. A cada página lida, a minha mente era sempre reportada ao texto de Deuteronômio seguinte: “Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te” (6:6,7). A razão porque a minha mente foi reportada a essa passagem bíblica durante a leitura do romance de Kafka é algo que nem eu mesmo consigo explicar, contudo, a força comunicativa dessa experiência é possível descrever. Já havia lido e pregado sobre esse texto inúmeras vezes, mas confesso que jamais ele tinha causado em mim uma impressão tão profunda e uma percepção tão vívida do seu ensinamento. Levado pela tragédia de Gregor Samsa, eu pude ver uma espécie de metamorfose na referida passagem. O texto, que para mim consistia em conceitos, transformou-se em imagens profundas em minha mente, em figuras de uma nitidez e brilho inigualáveis. Em meus estudos anteriores chegara sempre à conclusão que o texto ensinava a responsabilidade e persistência do pai ante o discipulado do filho, idéia com a qual ainda concordo. Não obstante, depois de ter a figura do pai de Gregor Samsa refletida no mais profundo de minha alma, pude perceber que o texto também ensina a importância do diálogo e do companheirismo entre pai e filho, princípios que, a meu ver complementam de forma maravilhosa o anterior. O texto mosaico, portanto, não mostra apenas a importância do discipulado, mas a importância do discipulado baseado no diálogo sincero e no companheirismo. O pai não deve apenas ensinar o filho, mas estar com ele, andar com ele, viver com ele... Talvez o ensinamento mais profundo, o princípio mais duradouro seja a sua presença na vida do filho. Até para mim, isso parece inexplicável e paradoxal, mas o fato é que eu só compreendi plenamente a urgência desse princípio luminoso depois de ter penetrado a escuridão existencial de Gregor Samsa, para entender a importância do diálogo foi necessário que eu ouvisse o silêncio angustiante do personagem de Kafka. Em outras palavras, depois de contemplar o gemido solitário desse homem-inseto, pude melhor compreender o valor do companheirismo no discipulado em minha tarefa de pai.

Este exemplo nos leva a refletir sobre o lugar da literatura extra-bíblica na vida do cristão, em linhas gerais, sobre o relacionamento entre o cristianismo e a cultura geral. Não há dúvida que estamos falando de uma experiência subjetiva e de caráter reconhecidamente intimista, fato que descarta qualquer pretensão de se tornar em princípio absoluto. Na verdade, não é esse o meu objetivo ao relatar esse fato. Reconheço que é possível que nenhum outro cristão, ao ler o romance de Kafka, tenha meditado sobre um texto bíblico e menos ainda sobre a passagem de Deuteronômio mencionada. Entretanto, essa experiência parece confirmar uma idéia da qual compartilho há algum tempo: em algumas situações, a literatura extra-bíblica nos ajuda na compreensão do texto bíblico e das verdades divinas. Quem poderá negar que a leitura de O Peregrino dará ao cristão uma melhor compreensão de sua saga na cidade da destruição rumo à cidade celestial? Pode ser que alguém não concorde comigo, mas eu compreendi melhor a angústia e desespero do homem sem Deus depois de ler os escritos de Nietzsche e ver os filmes do cineasta sueco Ingmar Bergman. O desespero de O sétimo selo e o silêncio existencial de Luz de Inverno me tornaram mais sensível a essa classe de pessoas. Acredito que Deus pode empregar esse tipo de conhecimento para nos ensinar grandes lições.

Com essa minha idéia, para evitar ser mal-compreendido, não pretende negar a relevância e eficácia da leitura bíblica na vida do crente, e muito menos sugerir que ele deve substituí-la pela leitura de Kafka, Nietzsche, ou mesmo de John Bunyan. Pretendo muito menos levantar polêmicas gratuitas e fomentar querelas teológicas. Na verdade, o meu propósito é simplesmente demonstrar que não devemos ver a literatura extra-bíblica sempre como um instrumento demoníaco, como algo que nos afasta de Deus, como um conhecimento de deve ser alvo do nosso ódio e repúdio.

Além disso, vivemos em um mundo onde existem outros tipos de conhecimento e, nem que seja apenas por questão de consciência, precisamos conhecê-los. Para descartar determinado conhecimento, o cristão sincero deve primeiro penetrar em sua essência, em suas profundezas. Alguns cristãos costumam invocar Tertuliano para sustentar aquilo que eu denomino “fideísmo burro”, enfatizando o modo como esse apologista desprezou as filosofias do seu tempo em nome da fé cristã. Esquecem, contudo, que o pensador de Cartago, chegou a essa conclusão depois de uma longa análise dos sistemas filosóficos do seu tempo. Ele pode ser chamado de fideísta, mas não de “fideísta burro” – alguém que despreza a priori todo tipo de conhecimento que não seja bíblico. Muitos que sustentam esse ponto vista, incorrem em uma contradição bastante elementar: Pregam o ódio ao conhecimento extra-bíblico, mas costumam usar comentários bíblicos em seus estudos. Deixam de considerar que alguns comentários bíblicos e outras ferramentas de estudo na área teológica escondem muito mais heresias do que as Fábulas de Esopo ou La Fontaine, mais ensinamento anticristão do que um Hamlet de Shakespeare.

Quando observo o exemplo de Cristo, o modo como ele conhecia tão profundamente a doutrina dos fariseus, seus adversários, não tenho como chegar à outra conclusão: o cristão não pode estar isolado da cultura extra-bíblica. Deve dialogar com ela, extrair dela aquilo que possa trazer algum tipo de edificação e, ainda que seja levado a descartar determinados ensinamentos, que o faça somente depois de conhecê-los.

Por fim, pode ser que você jamais tenha uma melhor compreensão do texto bíblico por meio da leitura de uma obra de Kafka, Tolstoi ou Baudelaire, pode ser que você não concorde com nenhuma idéia de Nietzsche, que despreze com todas as forças cada palavra de O Anticristo, que considere o Tratado de ateologia de Michel Onfray um insulto a Deus. Entretanto, como cristão sincero você não pode simplesmente fechar-se para esses conhecimentos como se eles não existissem. Essa fuga banal não é digna de alguém que afirma ter a mente de Cristo, de alguém que foi ordenado a “observar todas as coisas e a reter o que é bom”.
Postado por J. Marques

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