sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O REI, O PASTOR E A SULAMITA: ANOTAÇÕES SOBRE O CÂNTICO DA FIDELIDADE

INTRODUÇÃO

Muitas interpretações sobre Cantares já foram realizadas ao longo da história. Os partidários do método alegórico vêem na suposta história de amor entre Salomão e a Sulamita um simbolismo sobre o amor entre Cristo e sua Igreja. O pressuposto que guia essa interpretação é simples: em virtude do seu caráter espiritual, a Bíblia não poderia exaltar a dimensão sensual do amor. Sendo assim, o aparente conteúdo marcado pelo erotismo só poderia ser visto como uma espécie de analogia de uma forma mais elevada de amor. Na verdade, foi esse pressuposto que fez com que o livro de Cantares fosse um dos últimos a ser inserido no cânon do Antigo Testamento. A princípio, ele foi considerado sensual demais para integrar as Santas Escrituras. Esse tipo de interpretação foi predominante no cristianismo medieval, principalmente, por conta da influência dos ideais monásticos. Uma interpretação mais literal afirma que o livro narra de forma poética o relacionamento amoroso entre o rei Salomão e uma jovem identificada como Sulamita. Para o autor desse artigo, a primeira interpretação é absurda e a segunda é incompatível com as informações encontradas no próprio livro. Em outras palavras, a verdadeira história por trás do poema salomônico não se encaixa em nenhuma dessas análises. Para ser franco, por fazer parte do gênero poético, é possível que Cantares não seja baseado em nenhuma história verídica, mas seja apenas fruto da imaginação do poeta que o escreveu. Não obstante, se há uma história por trás do Cântico dos cânticos, ela precisa ser completamente distinta das sugestões apontadas acima. Assim, é necessário que empreendamos uma redescoberta da história que envolve esse clássico poema de amor. Como ponto de partida é preciso que consideremos que existem três personagens na história e não apenas dois como comumente é aceito.

1. A SULAMITA

Uma das questões mais intrigantes no livro diz respeito à identidade de sua protagonista. Ela é designada apenas como Sulamita. Provavelmente, o termo é um adjetivo pátrio, usado para identificar o povo dessa jovem. Assim, ela era chamada Sulamita por ser originária de Sulém. O problema é que em todo o antigo Testamento não há uma única referência a esse povo. Tal fato tem levado alguns estudiosos a sugerir que Sulen seria uma variação de Suném.
Mesmo sendo de origem incerta, o livro apresenta várias informações sobre essa jovem. Que a Sulamita pertencia à nobreza, fica claro pela expressão “filha de príncipe”, a ela dirigida (7:1). Seu colar de pérolas, as substâncias aromáticas com as quais se perfuma e seus trajes requintados também atestam a sua realeza (4:9, 10; 5:3). Além disso, a desejada de Salomão se imagina desfilando em um carruagem diante do seu povo, em uma espécie de cortejo real (6:12), algo inconcebível, não fosse a sua origem nobre. O texto também deixa claro que a Sulamita foi vítima de intrigas criadas por seus irmãos, sendo obrigada por eles a cuidar de vinhas ((1:6). Embora o texto não apresente claramente o que motivou essas intrigas, duas possibilidades podem ser admitidas. Em primeiro lugar, elas podem estar ligadas à sucessão real. O fato da referência ao pai ser omitida ser é uma indicação de que já havia morrido. Se a Sulamita fosse a primogênita, ela poderia casar-se e o trono passaria a seu esposo, o que não seria interessante para os irmãos. Em segundo lugar, pode ser que os irmãos tenham isolado a Sulamita do convício real como uma espécie de punição por algum ato praticado por ela. Talvez em função de um relacionamento com uma pessoa de posição social inferior. Seja como for, o fato é que os irmãos vêem a presença da Sulamita como uma ameaça e querem mantê-la isolada. Só assim poderíamos conceber a idéia de uma princesa trabalhando de sol a sol no árduo trabalho dos vinhedos. Contudo, o texto nos mostra que a Sulamita é retirada desse desgastante trabalho e levada a corte de Salomão (1:4). Provavelmente, para compor o farto harém do monarca israelita. De fato, ela permanecerá nesse lugar durante a maior parte da narrativa. Entretanto, no final do relato nossa protagonista se ausenta do palácio por motivo não esclarecido (6:13), não havendo nenhum indício do seu retorno.

2. SALOMÃO
Claramente, Salomão é um dos protagonistas do poema. A maioria das interpretações considera o rei de Israel como sendo o amado da Sulamita. Não obstante, várias evidências podem ser apresentadas para refutar essa posição. Em primeiro lugar, a narrativa parece indicar que a Sulamita se dirige a duas pessoas bem distintas. Ao rei (1:4, 12) e ao seu amado (1:7, 16; 2:8; 3:1; 5:6, 8). No primeiro caso, o tratamento é apenas respeitoso em virtude da posição de autoridade do monarca, no segundo caso, o termo é sempre acompanhado pela intimidade e paixão que movem os amantes.
Em segundo lugar, a Sulamita deixa claro que o seu amado está lhe seguindo às escondidas. Ele contempla a sua amada por trás das paredes de seu aposento e lhe espreita pelas grades (2:9). Claramente, o amado teme ser surpreendido por alguém. Esse temor é tão evidente que em um dos encontros, o amado foge de forma inesperada (5:5, 6). Provavelmente, por medo da guarda que exercia uma vigilância rigorosa sobre o harém real. Se essa pessoa fosse Salomão, não haveria justificativa para tal temor. Na qualidade de rei e esposo da Sulamita, ele poderia se dirigir aos seus aposentos com toda a confiança, sem a necessidade desses encontros furtivos.
Em terceiro lugar, a Sulamita afirma que tem saudade do seu amado (7:8). Isso nos leva a concluir que os amantes estão separados, ou, pelo menos, não podem se encontrar sempre que desejam. Novamente, esse fato não pode ser aplicado a Salomão. Em geral, os haréns reais ficavam bem próximos ao palácio. Sendo assim, o rei de Israel poderia ver a sua amada diariamente e não havia razão para nutrir por ela saudade, esse sentimento que brota unicamente a partir da ausência e do desencontro.
Uma outra evidência pode ser vista no receio da Sulamita em tornar público o seu relacionamento. Ela sabe que poderá ser alvo do repúdio público em virtude da condição inferior de seu amado (8:1). A jovem deseja que seu amado seja semelhante aos seus irmãos, uma outra forma de dizer que gostaria que ele pertencesse à mesma classe social à qual pertencia. Portanto, o relato parece indicar que o amado é de uma posição social inferior, o que não poderia ser aplicado a Salomão.
Em quinto lugar, em uma de suas fugas noturnas para se encontrar com o seu amado, a Sulamita é surpreendida e espancada pelos guardas do murro (5:5-7). Parece absurdo que os guardas ousem espancar uma das esposas do rei, principalmente, se considerarmos que ela está em busca dele. A não ser que o próprio Salomão, sabendo dos encontros entre a Sulamita e seu amado, tivesse ordenado esse tratamento agressivo.
Aqueles que não concordam com essa linha de interpretação, em geral, fazem o seguinte questionamento: como Salomão poderia ter escrito uma história onde ele mesmo é o vilão? Em primeiro lugar, se considerarmos a inspiração divina do livro, somos levados a crer que o escritor humano foi verdadeiro e imparcial ao registrar cada fato, ainda que esses fatos sejam contra a sua pessoa. A Bíblia não é um tipo de biografia encomenda que exalta somente as virtudes dos seus protagonistas. Em segundo lugar, a hipótese do livro ter sido escrito por uma outra pessoa é completamente aceitável. Isso porque o título “Cântico dos cânticos de Salomão” pode indicar que o rei de Israel foi o autor da obra, mas pode também significar que ele foi apenas o personagem central de uma obra escrita por outro autor.

3. O PASTOR
Mais enigmático do que a identidade da Sulamita é a identidade do seu amado. A não ser que o interpretemos como sendo Salomão. Essa posição, contudo, já foi descartada no tópico anterior. O relato apresenta poucas informações sobre esse personagem, nem mesmo o seu nome ou origem são mencionados. Entretanto, os poucos dados que podem ser encontrados no poema são bastante esclarecedores. O amado da Sulamita é um pastor de ovelhas, alguém de uma condição social bastante humilde (1:7; 2:16; 6:2, 3). Esse fato justificaria a não aprovação desse relacionamento amoroso vivenciado por eles. Provavelmente, o amado não morava tão distante do palácio, fato que pode ser deduzido de suas visitas contínuas à sua amada (2:9; 3:4; 5:2). Em trechos da narrativa a coragem do pastor fica evidente. Ele é capaz de enfrentar os maiores perigos para encontrar-se com a Sulamita e sufocar a sua saudade. O pastor consegue ultrapassar até mesmo a forte segurança do palácio. Em um desses encontros a sua ousadia beira o extremo. Ignorando o perigo, ele vai ao quarto de sua princesa no harém real (5:4, 5). No final, a sua coragem será recompensada pela fidelidade de sua amada (8:10).

CONCLUSÃO

A linha de interpretação exposta neste artigo exige que seja dada uma outra temática ao Cântico dos cânticos. É necessário, portanto, que a fidelidade, e não o amor, seja colocada como centro desse livro. Obviamente o amor está presente neste poema. Não obstante, ele funciona apenas como um palco onde a fidelidade conjugal é exaltada. Levando em consideração as circunstâncias, o autor desse artigo ousa afirmar que em Cantares está uma das mais belas histórias sobre a fidelidade em todos os tempos. A Sulamita “foi um muro”. Que honra prestaríamos ao autor do Cântico se compreendêssemos o sentido dessa metáfora.
Postado por J. Marques

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