sexta-feira, 5 de setembro de 2008

ENSAIO SOBRE O ESQUECIDO CÂNTICO DA VINHA

“Teve Salomão setecentas mulheres princesas e trezentas concubinas” I Re. 11:3.

A Sulamita foi uma das princesas de Salomão. Na verdade, ela foi praticamente obrigada a aceitar essa condição. Com toda a sua grandeza e fama, o filho de Davi conquistou muitas mulheres. Não obstante, aquela a qual ele mais amou, não foi capaz de conquistá-la. Mas por que razão Salomão não pôde conquistar o coração dessa princesa? Simplesmente porque ela já o havia entregado a outro. O felizardo era um jovem pastor a quem ela amava com todas as suas forças e com quem tinha feito juras de amor eterno. O primeiro encontro entre o filho de Davi e a Sulamita foi em uma vinha onde esta trabalhava. O rei de Israel ficou encantado com a beleza quase angelical daquela jovem e amou-a desde o primeiro encontro. Com seu olhar envolvente a Sulamita arrebatou o coração de Salomão. Mas o que fazia uma princesa trabalhando arduamente em um vinhedo?

“Os filhos de minha mãe se indignaram contra mim e me puseram por guarda de vinhas, a vinha, porém, que me pertence não a guardei” Ct. 1:6.

A nossa heroína havia sido forçada por seus irmãos a realizar essa tarefa desgastante depois que o seu romance com um pobre pastor de ovelhas havia sido descoberto. O trabalho era ao mesmo tempo uma punição e uma forma dos irmãos exercerem uma vigilância sobre a jovem, considerando que os vinhedos reais eram guardados de forma bastante rigorosa. Quem tentasse penetrá-los, poderia ser surpreendido pela guarda. Com essa medida, os irmãos pretendiam separar a Sulamita do seu amado, em virtude do abismo social que separava os amantes. O romance não se adequava às convenções sociais da época. A medida não surtiu efeito, pois os jovens, movidos por sua paixão, continuaram a se encontrar e a embalar o seu amor à sombra das videiras. A cada pôr-do-sol, os jovens se encontravam e, sentados sobre as folhagens do vinhedo (1:16), prometiam fidelidade ao outro. Entretanto, tramas sem fim espreitavam o caminho dos amantes, a fim de colocar à prova a resistência do seu amor.

“O rei me introduziu nas suas recâmaras” Ct. 1:4.

Sabendo que a Sulamita ainda continuava a se encontrar às escondidas com seu pastor e percebendo que Salomão ficara encantado com a sua beleza, os irmãos resolveram entregá-la ao rei de Israel em uma espécie de acerto diplomático. Com isso, além de colocarem fim ao romance proibido entre ela e o tal pastor, garantiam uma aliança com o poderoso monarca de Israel. Assim, a contragosto, a nossa heroína foi levada à corte, ficando confinada ao harém real. Agora os amantes estavam separados. A lembrança dos encontros amorosos entre as árvores do vinhedo acalentava a dolorosa saudade que agora os consumia em silêncio (7:10). Contudo, mesmo a despeito da distância física, as suas almas continuavam unidas, e os jovens começaram a maquinar estratagemas a fim de que seu amor não fosse derrotado. Movidos pela paixão e pela fidelidade mútua, os dois estavam dispostos a enfrentar os maiores perigos para continuarem juntos.

“As muitas águas não poderiam apagar o amor, nem os rios afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens de sua casa pelo amor, seria de todo desprezado” Ct. 8:7.

Salomão teve inúmeras mulheres, mas por nenhuma ele nutriu um sentimento tão profundo como a paixão arrebatadora que sentiu pela Sulamita. Mas logo o rei de Israel começou a perceber que aquele sentimento não era recíproco. Maior que a indiferença com a qual a jovem lhe tratava era apenas a tristeza expressa em seus lábios. A dolorosa separação havia furtado o sorriso radiante da Sulamita e a todos era evidente a sua infelicidade. O rei de Israel tentou de todas as formas conquistar o amor da bela moça. Ofertou-lhe os presentes mais preciosos, tudo aquilo que o dinheiro podia comprar ele ofereceu à sua amada. Mas tudo foi em vão. O amor dessa bela jovem não tinha preço. Ela já tinha oferecido gratuitamente ao seu pastor. O rei promoveu uma grande festa para todos os nobres da corte e exigiu que a Sulamita se assentasse ao seu lado (1:12). Certamente, todas as mulheres de Salomão gostariam de ter recebido essa honraria. Mas nem mesmo esse reconhecimento público foi capaz de mudar o coração da princesa. O seu amor era tão forte que ela seria capaz de rejeitar até mesmo toda a fortuna do rei de Israel e toda a glória que isso poderia acarretar.

“Mal os deixei, encontrei logo o amado da minha alma; agarrei-me a ele e não o deixei ir embora, até que o fiz entrar em casa de minha mãe e na recâmara daquela que me concebeu” Ct. 3:4.

O pastor não havia esquecido a Sulamita. Todas as noites ele circulava pelos arredores do palácio em busca da sua amada e, cada vez que a jovem percebia a presença dele, o seu coração se enchia de alegria e esperança. Ela era tomada de um desejo quase incontrolável de correr para os seus braços, ainda que para isso tivesse que pular as altas muralhas do palácio. Em uma noite, sabendo que seu amado estava à sua espera, a Sulamita resolveu correr o risco para desfrutar de um encontro com ele fora das muralhas do castelo. Para conseguir passar pela guarda que vigiava a entrada do palácio, a jovem precisava de uma boa desculpa. Afirmou que estava à procura do seu amado. Certamente, os guardas pensaram que ela estava se referindo a Salomão, por isso, permitiram a sua passagem tranquilamente. Mas ao chegar fora dos muros, a Sulamita percebeu com tristeza que o seu pastor não estava mais ali. Provavelmente, fugira temendo ser descoberto pelos guardas. A jovem saiu à procura do seu amado, encontrando-o em seguida. Naquela noite, embalados pelo amor, os jovens sufocaram a saudade e reataram o laço de fidelidade que os unia.

“Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade, espancaram-me e feriram-me; tiraram-me o manto os guardas do muro” Ct. 5:7.

Depois do primeiro encontro, a Sulamita sempre encontrava uma forma de sair dos seus aposentos no harém real para encontrar-se com o seu pastor. Os encontros entre os jovens começaram a se tornar mais freqüentes, até que Salomão os descobriu. Tentando surpreender os amantes, o rei reforçou a segurança no harém e nos arredores do palácio e ordenou que a jovem fosse punida com violência e o pastor fosse morto, caso fossem flagrados em seus encontros furtivos. Um dia a Sulamita não compareceu ao local habitual de encontro no horário determinado, fato que preocupou o seu pastor. À medida que o tempo passava e ela não chegava, aumentava a ansiedade do jovem. Então, em uma atitude ousada, dessas que só podem ser justificadas por um ardente amor, ele resolveu ultrapassar as muralhas do castelo e ir até os aposentos da sua amada no harém. A batida do pastor na porta logo foi percebida por ela, mas o barulho também chamou a atenção dos guardas e o jovem teve que fugir para não ser surpreendido e morto. Quando a Sulamita saiu dos seus aposentos, exalando o seu perfume, o seu pastor já se retirara. Quase desesperada, ela foi ao local de sempre para tentar encontrá-lo, contudo, no caminho, foi surpreendida pelos guardas do muro. A jovem foi ferida, espancada e levada acorrentada à presença de Salomão (5:2-8). Mesmo a despeito de sua indiferença e sabendo que o seu coração pertencia a outro, o grande rei de Israel continuava cada vez mais fascinado por aquela bela princesa. O rei estava enfurecido, afinal de contas, aquela a quem ele tanto amava, dedicava todo o seu amor a um humilde pastor. Salomão não conseguia aceitar que uma princesa rejeitasse a companhia de um rei para se entregar a um homem do povo. Mas o filho de Davi ainda conservava lapsos da sabedoria divina e decidiu agir com misericórdia em relação à Sulamita. Mais que isso, percebendo que ela era sua prisioneira e não sua esposa, resolveu deixá-la livre.

“Volta, volta, ó Sulamita, volta, volta para que nós te contemplemos” Ct. 1:13.

A Sulamita ainda permaneceu no harém por algum tempo, mas ela não era mais vigiada, pois Salomão lhe concedera liberdade. Com esse gesto, o rei de Israel tentava uma última estratégia para ganhar o coração de sua amada. Entretanto, ele conhecia o risco que corria com essa medida. Poderia ser que o coração da Sulamita fosse tocado por esse gesto nobre da parte do rei, mas ela também poderia empregar a sua liberdade para fugir do palácio e se entregar definitivamente ao seu amado. O que Salomão temia não demorou a acontecer. Em uma noite em que o rei não se encontrava no palácio - tinha ido visitar a rainha de Sabá -, a Sulamita saiu do palácio para não mais voltar e foi ao encontro do seu amado. Ao ser comunicado da fuga de sua amada ao seu retorno, o desespero do rei de Israel foi tremendo. Recolheu-se ao seu leito e não apareceu em público durante dias. Durante muito tempo a dor da perda consumia os seus pensamentos, fato comprovado em uma canção que ele compôs dedicada a sua amada. O título dessa canção, “Volta, volta, ó Sulamita”, era uma súplica comovente do rei para que sua amada retornasse e ele pudesse contemplá-la novamente.

“Eu sou um muro, e os meus seios como suas torres; sendo eu assim, fui tida por digna da confiança do meu amado” Ct. 8:10.

A Sulamita saiu do palácio e correu para os braços do seu amado para saciar o amor há muito sufocado. O reencontro no jardim foi emocionante e os beijos não queriam ter fim, pois o próprio amor que os movia era interminável. Tendo por testemunhas as romeiras e as cabras que pastavam próximo, o pastou exaltou em versos líricos a fidelidade inabalável de sua amada. “Jardim fechado és tu, minha irmã, noiva minha, manancial recluso, fonte selada”, sussurrou o jovem ao ouvido da Sulamita (4:12), demonstrando que, mesmo diante de todas as investidas de Salomão, ela conservara a sua pureza. “Vem depressa, amado meu, faze-te semelhante ao gamo ou ao filho da gazela, que saltam sobre os montes aromáticos” (8:14), a princesa respondeu ao seu amado. Os dois dormiram abraçados sobre a relva e, pela manhã, o pastor colheu figos, passas, maçãs, mel e leite para alimentar a sua amada.

“Teve Salomão uma vinha em Baal-Hamom; entregou-a a uns guardas, e cada um lhe trazia pelo seu fruto mil peças de prata” Ct. 8:11.

Salomão jamais esqueceu a Sulamita, o rosto angelical dessa jovem que ele encontrara entre as videiras jamais saiu de sua mente. Tamanha era a fixação por ela que o rei de Israel resolveu plantar uma vinha bem próximo onde encontrara a sua amada pela primeira vez. Para ali ele sempre ia a fim de lamentar a ausência daquela a qual ele mais amou. Todas as tardes, o rei caminhava solitário por entre as videiras e se imaginava compartilhando com a Sulamita aquelas doces uvas. Diz uma antiga tradição que em seu leito de morte o grande rei de Israel rogou a presença da Sulamita para que o seu belo rosto fosse a última imagem contemplada por ele em vida. A jovem atendeu ao pedido de Salomão e o rei descansou feliz. O seu corpo foi sepultado na vinha, bem perto onde ele vira a Sulamita pela primeira vez.

* Nota explicativa: À primeira vista, o leitor poderá considerar esse artigo tanto pretensioso quanto fictício, uma vez que ele contraria a interpretação de Cantares usualmente aceita: a tradicional idéia do rei Salomão e sua amada Sulamita. Na verdade, o autor sempre considerou essa posição problemática à luz do conteúdo do livro. Ela deixava muitas questões sem respostas. Esse fato serviu de motivação para a busca de uma proposta alternativa. Assim, embora alguns possam considerar essa interpretação fantasiosa, deve ser acrescentado que ela é fruto de um estudo bastante rigoroso, baseado nos dados da obra. Em artigos posteriores, o autor publicará um resumo dessa análise. Por hora, o seu objetivo é apenas desafiar os leitores a mergulharem no Cântico dos cânticos e analisarem o seu conteúdo sem idéias pré-concebidas. Na verdade, se os leitores não compactuarem com seu pensamento, mas forem incitados ao estudo criterioso do livro, o autor terá alcançado o seu principal objetivo.
Postado por J. Marques

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