terça-feira, 11 de novembro de 2008

DISCURSO SOBRE A AMIZADE II: DO PRINCÍPIO DA FRANQUEZA

É melhor a repreensão franca do que o amor encoberto. Leais são as feridas feitas pelo que ama, mas os beijos de quem odeia são enganosos”[1].

A franqueza no relacionamento entre amigos foi outro princípio bastante apreciado entre os escritores antigos. Já no século VII a. C., o poeta lírico Focílides de Mileto recomendava que “os amigos deveriam tratar um com outro dos rumores que corriam entre os concidadãos”[2]. Recomendação semelhante pode ser encontrada no fragmento de Teognis seguinte:

Não sejas meu amigo de palavras e tenhas teus pensamentos em outro parte. Ou ama-me com vontade sincera ou rompe comigo e sê meu inimigo abertamente. O que tem uma língua e dois corações é um companheiro perigoso, cuja inimizade é preferível à sua amizade[3].

Cícero acrescenta que “a única ocasião em que não devemos deixar de ofender um amigo, é quando se trata de lhe dizer a verdade e de lhe provar assim a nossa fidelidade”[4]. Como pode ser observado, os escritores antigos não concebiam a verdadeira amizade como dissociada da franqueza. De fato, esse princípio é conseqüência de uma outra idéia bastante comum entre eles: a idéia de que a amizade era uma relação baseada na virtude[5].

Mas em que consiste a franqueza? Esse princípio pode ser definido como a expressão da verdade que deve marcar o relacionamento entre amigos. O provérbio de Salomão citado acima apresenta um princípio geral sobre ética social, mas que pode ser aplicado ao relacionamento entre amigos. Salomão emprega uma antítese bastante sugestiva para falar do princípio da franqueza. No entender do sábio, a ferida sincera é preferível ao beijo hipócrita, e a repreensão franca é mais valiosa do que o falso elogio. A figura de linguagem empregada pelo sábio pode ser explorada um pouco mais. A razão do princípio da franqueza ser comparado a uma ferida é muito simples. Às vezes, a verdade produz uma dor momentânea. Isso acontece porque ela contraria a vontade daquele que está no erro e, quem está no exercício de sua vontade, não gosta de vê-la contrariada, ainda que seja pelo mais íntimo dos amigos. Mas essa dor é momentânea, pois o amigo, se pode ser considerado com tal, logo perceberá que a ferida da verdade carrega dentro de si mesma o bálsamo cicatrizante que restaura a amizade à sua harmonia inicial. A hipocrisia e a falsidade, o oposto da franqueza e da verdade, são comparadas a um beijo. O beijo, enquanto contato corporal, produz uma determinada sensação de prazer. Mas esta agradável sensação dura apenas enquanto os objetos sensíveis estão em contato. Quando eles se separam, ela logo desaparece. Assim, é o prazer gerado pela falsidade. A sua duração é bastante curta e seu fim é sempre o oposto do pretendido: o desprazer. Para resumir a figura em poucas palavras, a franqueza produz um desprazer momentâneo seguido de um prazer durável, enquanto que a falsidade gera um prazer momentâneo acompanhado por um desprazer durável.

Um estudo mais detalhado sobre a franqueza irá revelar que ela acomoda vários outros princípios. Nesse tópico serão analisados aqueles três considerados mais essenciais. Em primeiro lugar, a franqueza envolve uma intenção sincera no estabelecimento da amizade. Aquele que pretende fazer amigos deve fazê-lo porque tem o desejo sincero de vivenciar a amizade em toda a sua dimensão. Ele deve ter a capacidade de ver o relacionamento amistoso não apenas como um meio, mas como um fim. É verdade que a amizade, em virtude de sua própria natureza, é um tipo de relacionamento que acarreta vantagens para os seus participantes, mas isto não significa que devemos procurar fazer amigos simplesmente pensando em obter vantagens pessoais. Infelizmente, sabendo que a amizade é um relacionamento de identificação, muitos são aqueles que procuram desenvolver essa forma de amor com motivos interesseiros. Querem ser amigos de determinadas pessoas, simplesmente porque isso lhes trará determinadas vantagens, seja um objeto valioso, fama, posição social, etc. Esse problema foi constatado pelo próprio Salomão. Nas suas palavras, “ao generoso, muitos o adulam, e todos são amigos do que dá presentes”[6]. Nessa passagem o sábio denuncia os motivos interesseiros que movem certas amizades. Além disso, o texto deixa implícito que a amizade que começa dessa forma, em bem pouco tempo, será transformada em adulação. No sentido mais rigoroso do termo, alguém que procura estabelecer uma amizade visando unicamente angariar vantagens pessoais, nem pode ser classificado como amigo, mas como um adulador, uma espécie de sanguessuga que não pensa em outra coisa a não ser em satisfazer a sua natureza de parasita. Um ser semelhante à raposa que aparece das fábulas de Esopo, que tem todos por amigos, somente até conquistar os seus desejos mais egoístas. Mas o seu final é sempre bastante melancólico. Ela sempre termina sem nenhum amigo, entregue a solidão gerada por seu egoísmo. No fundo este é sempre o destino dos interesseiros. Sempre que os seus reais intentos são descobertos, não restará ninguém que queira ser seu amigo. Para repetir um adágio empregado pelos antigos gregos, “até mesmo o homem que vive na mais completa solidão, desfruta mais da amizade do que aquele que vive cercado de amigos, com a única finalidade de explorá-los”[7]. A razão do interesseiro sempre terminar dessa forma é lógica, embora seja trágica. Ele não conquista amigos porque, não está em busca de amizades. De fato, ele está em busca de determinados benefícios e encontra na amizade apenas um meio mais seguro para conquistá-los. Quando ele atinge o seu fim, já não precisa mais do meio, descarta-o como algo irrelevante. Ele está sem amigos porque, no fundo, não queria amigos. Por fim, é verdade que toda amizade traz vantagens para aqueles que dela participam. O interesseiro, não obstante, deixa de considerar que essas vantagens devem ser comuns a ambos os participantes. Do contrário, a amizade tem a sua verdadeira natureza suprimida. Essa questão será melhor discutida no princípio de reciprocidade.

Em segundo lugar, a franqueza implica na confrontação do amigo com a verdade quando a situação assim o requer. Isso significa que o amigo não está autorizado a mentir em nome da amizade. Mas o que dizer daqueles amigos que não suportam a verdade? O amigo que não é capaz de assimilar uma verdade, embora ela seja a princípio dolorosa, é porque a sua própria amizade é uma mentira. É somente quem vive na mentira que sente prazer nela e fica incomodado com a verdade. Em geral, a verdade não separa amizades verdadeiras. Tudo que ela faz é denunciar as falsas. “O que encobre a transgressão, adquire amor, mas o que traz o assunto a baila separa os maiores amigos”[8]. Com esse texto o sábio não está defendendo uma atitude de conivência em relação ao erro. Na verdade, ele está perfeitamente de acordo com o seu tom crítico, às vezes satírico, em relação às falsas amizades. Além disso, em um outro provérbio, o sábio aconselha: “Pleiteia a tua causa diretamente com o teu próximo, e não descubra o segredo de outrem”[9]. No fundo, o que ele deseja é demonstrar que, alguns considerados amigos, logo abandonam seu companheiro quando são confrontados com a verdade. Quando ele afirma que quem encobre a transgressão adquire amor, é impossível não perceber a sua veia irônica. O que ele dispensa é um falso amor, movido unicamente pela conveniência. Um relacionamento dessa natureza, não pode ser classificado como amizade. O amigo está aberto à verdade, ainda que essa verdade contrarie a sua vontade. A nosso ver, ou estamos falando de conceitos bem distintos, ou C. S. Lewis está completamente equivocado ao afirmar que a amizade pode ser considerada uma escola do vício. Parece absurdo que o mais primordial dos amores contenha, em sua essência, uma inclinação para o vício. A não ser que o pensador irlandês esteja falando das falsas amizades. Mas estas são tão desvirtuadas, tão corrompidas, que nem merecem ser classificadas como tal.

Por fim, o princípio da franqueza implica em uma atitude de fidelidade entre os amigos. Toda amizade verdadeira é um pacto, uma aliança entre duas ou mais pessoas. Essa aliança exige a dedicação sincera dos amigos entre si. Essa fidelidade, entretanto não significa que uma das partes tenha que compactuar com os erros do seu companheiro. Para citar as palavras de Cícero, “a primeira lei da amizade é não pedir nem conceder nada de vergonhoso”[10]. Assim, constitui-se em um erro crasso empregar a fidelidade para justificar os atos mais baixos entre os amigos. A fidelidade é uma das principais virtudes cristãs. Contudo, em nenhum código de ética, a virtude tem comunhão com o vício. É verdade que alguns, ditos amigos, empregam o princípio da fidelidade para justificar o erro. Não obstante, essa tendência perniciosa é fruto da confusão entre fidelidade e cumplicidade. O exemplo abaixo, embora seja hipotético, ilustra bem essa confusão.

Uma jovem A tem uma amiga B cuja fidelidade ela considera acima de qualquer suspeita. A amiga A confia todos os seus segredos à amiga B, tendo-a como sua confidente. Em um belo dia a amiga A descobre que está grávida de seu namorado. Desesperada e temendo a reação dos familiares, ela resolve seguir o conselho do namorado e abortar o bebê. Antes de abortar, como sempre, ela conta todo o caso à amiga B e pede que ela mantenha sigilo absoluto acerca do assunto. A amiga A confia inteiramente na fidelidade da amiga B e sabe que ela jamais revelará o segredo. Surge, então, o questionamento: diante de uma situação como esta, o que significa ser fiel? Para a amiga A ser fiel significa guardar o segredo a qualquer custo, pensamento compartilhado pela amiga B. Contudo, ambas estão igualmente equivocadas. Entre as supostas amigas não há fidelidade, mas apenas a falsificação mais barata e grotesca desse princípio: a cumplicidade. A fidelidade é um princípio cristão. Trata-se da dedicação incondicional, mas consciente a uma determinada pessoa. A cumplicidade, por sua vez transmite a idéia da participação em uma situação moralmente injustificável por conta do apego a outrem. Do ponto de vista jurídico, o cúmplice que é alguém que, mesmo não participando diretamente, torna-se culpado de determinado crime. Espiritualmente falando, trata-se da participação em pecados de outras pessoas. É o que pode ser percebido na exortação de Paulo a Timóteo: “Não te tornas cúmplice de pecados de outrem”[11].

Embora a confusão entre fidelidade e cumplicidade seja freqüente em relação à amizade, quando os termos são analisados a fundo, percebe-se a grande oposição entre ambos. A fidelidade é baseada na verdade, a cumplicidade, na mentira, o primeiro é guiado por um sentimento altruísta, o segundo, por um egoísmo cego, um visa o maior bem, o outro uma mera conveniência. Ser fiel a alguém não significa encobrir os seus erros. Não há ninguém mais fiel do que Deus, mas também não há ninguém que mais denuncie o pecado dos homens. Nunca deve ser esquecido que as virtudes cristãs caminham de mãos dadas. No caso da fidelidade, a verdade e a justiça são suas companheiras inseparáveis. Engana-se completamente aquele que acha que assumindo uma postura de cumplicidade está fazendo o bem ao seu amigo. A cumplicidade não torna as pessoas melhores. No fundo ela corrompe ainda mais a sua conduta, já que anula a sua sensibilidade ao erro. Para usar as palavras de Salomão, “o homem que lisonjeia o seu próximo, arma-lhe uma rede aos passos”[12]. Além disso, como pode ser observado no exemplo anterior, ela acaba punindo pessoas inocentes. Já aprendemos com o sábio que a fidelidade pode ser comprovada pela ferida. Não é a ausência de dor que autentica a fidelidade, mas a presença constante da verdade.

A franqueza evita o mexerico, pratica tão nociva à natureza da amizade. Nesse sentido, Pascal está correto ao afirmar em seus Pensamentos que “se todos os homens soubessem o que dizem uns dos outros, não haveria quatro amigos no mundo”[13]. Como pode ser observado, a prática do mexerico, ao violar o princípio da franqueza, destrói o mais primordial dos amores. Disso se conclui que o princípio da franqueza e o princípio da constância estão relacionados.

Para concluir, é extremamente problemático conceber a amizade verdadeira do dissociada da franqueza. Sem esse princípio, duas pessoas podem ser cúmplices, compassas, parceiros, aliados, menos amigos verdadeiros. É até concebível que os falsos amigos possam simular a franqueza, mas é impossível que os verdadeiros não procurem partilhar desse princípio divino. E aqueles cristãos sinceros que, no princípio, tiveram que reduzir sua lista de amigos pela metade? Seria o caso de enfrentarem uma redução ainda mais drástica com este segundo princípio? Se essa redução significar a eliminação dos aduladores e dos cúmplices, que isso lhes seja motivo de regozijo e não de frustração.


Notas:

1. Provérbios 25:5,6.

2. FOCÍLIDES DE MILETO. In: Líricos griegos: elegíacos y yambógrafos. Vol. I. Barcelona: Ediciones Alma Máster S. A., 1956. p. 137.

3. TEOGNIS. In: Líricos griegos: elegíacos y yambógrafos. Vol. II. Barcelona: Ediciones Alma Máster S. A., 1956. p. 174.

4. CÍCERO. Diálogo sobre a amizade. (Versão para ebook). Disponível em <http://www.ebooksbrasil.com/> (Acessado em 15 de novembro de 2007).

5. C. S. Lewis discorda desse ponto de vista. Segundo o pensador cristão, a amizade possui um caráter ambíguo. Ela é tanto uma escola da virtude, como uma escola do vício.

6. Provérbios 19:6.

7. Ad tempora.

8. Provérbios 17:9.

9. Provérbios 25:9.

10. CÍCERO. op. cit. p. 27.

11. I Timóteo 5:22.

12. Provérbios 29:5.

13. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.


Postado por J. Marques

Um comentário:

Miller disse...

Muito interessante o seu texto. A amizade tem como um dos frutos a franqueza. Um fruto duro e amargo que às vezes, fere, magoa, entristece e enraivece o coração, mas que produz, em seus momentos finais, um doce e saudável sentimento de amor, de cuidado, de preocupação. Quem não teve uma amizade que lhe faz falta, lhe traz saudade? E o que a gente mais recorda dela? A sensação de confiança, proteção e ajuda. Em razão disso, o que seria da amizade se não fosse a franqueza?