quinta-feira, 27 de novembro de 2008

DISCURSO SOBRE A AMIZADE III: DO PRINCÍPIO DA MODERAÇÃO

Não sejas freqüente na casa do teu próximo, para que não se enfade de ti e te aborreça[1].

Os escritores clássicos denominavam esse princípio temperança e consideravam-no uma das mais importantes virtudes, conforme pode ser atestado pelo testemunho de Platão. Segundo o filósofo grego, “nenhuma cidade, tenha ela as leis que tiver, poderá viver tranqüila, quando os seus cidadãos consideram de bom aviso gastar dessa maneira e não ocupar-se com mais nada a não ser comer e beber à farta, só pensando nos prazeres do amor”[2]. Marco Aurélio, por sua vez, coloca este princípio, juntamente com a justiça, a coragem e a verdade, entre os bens mais preciosos da existência humana[3]. Horácio acrescenta que “não é sábio o sábio, nem justo o justo, se seu amor à virtude é exagerado”[4]. Um provérbio medieval afirma que “aquele que vende a temperança, compra a morte”[5]. Até mesmo Epicuro, considerado o fundador da filosofia hedonista, era taxativo em prevenir os seus compatriotas acerca dos perigos da intemperança. Tentando corrigir falsas interpretações acerca de seu pensamento, assim ele combate à falta de moderação:

Quando dizemos, então, que o prazer é o fim, não queremos referir-nos aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade, como crêem certos ignorantes, que se encontram em desacordo conosco ou não nos compreendem, mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma[6].

O termo grego empregado para temperança pode ser traduzido como moderação, sobriedade, juízo equilibrado, prudência, etc. A principal razão que justificava a importância dada pelos escritores antigos à temperança estava no fato de que ela capacitava o homem a experimentar os prazeres de forma equilibrada, ela prevenia a ocorrência de excessos. Como Demócrito costumava exortar seus compatriotas, “desejar algo violentamente cega a alma para o restante”[7]. Aristóteles considerava a temperança um meio termo entre dois vícios: a insensibilidade e a intemperança. Segundo ele, o homem virtuoso não era aquele que desfrutava de todos os prazeres e nem aquele que se abstinha de todos os prazeres, mas aquele que sabia selecionar os prazeres e experimentá-los de forma equilibrada[8]. Em um provérbio anterior ao citado acima, Salomão afirma: “Achaste mel? Come apenas o que te basta, para que não te fartes dele e venhas a vomitá-lo”. Com a figura do mel, o sábio introduz a discussão acerca da moderação. Este alimento tão saboroso, capaz de produzir em nós uma prazerosa sensação gustativa, quando consumido sem moderação, torna-se algo extremamente indesejável, capaz de gerar em nós o mais incontrolável dos repúdios: o vômito.

De fato, não há como negar a importância da moderação até mesmo para que haja um perfeito exercício das outras virtudes. Sem ela, os outros princípios morais perdem a sua essência. Sem a dosagem da temperança, a justiça transforma-se em crueldade, a coragem é convertida em temeridade, o conhecimento cede aos apelos da soberba, a esperança cede espaço à apatia e a própria amizade é levada a vestir a máscara hipócrita da cumplicidade. A Bíblia reconhece claramente a relevância dessa virtude. Para fazer uma citação livre de uma passagem do próprio Salomão, “o homem não deve ser nem demasiadamente justo, nem demasiadamente sábio”[9]. Obviamente, o sábio não está incentivando a injustiça e muito menos legitimando a ignorância. Ele não está dizendo que não devemos ser justos, muito menos que não devemos ser sábios. O que ele está desaprovando é o exercício desequilibrado dessas virtudes. O sábio está certo que qualquer virtude, quando desacompanhada da moderação, perde a sua característica original. Somente após estas considerações podemos discutir o texto onde Salomão aplica o princípio da moderação à amizade.

A Bíblia recomenda a amizade, mas não a amizade sem moderação. O relacionamento entre amigos é também marcado pela troca de afeto. Contudo, no homem, nada é tão tendencioso à intemperança como o seu componente afetivo. É no terreno escorregadio das emoções que ele é mais facilmente atraído pelo excesso. Para proteger-se contra esse perigo, ele precisa estar protegido pela armadura da moderação. Essa parece ser a preocupação de Salomão ao afirmar que o amigo não deve ser freqüente na casa do seu companheiro. Certamente, o sábio não está sugerindo que os amigos não devem se visitar entre si. O seu cuidado é no sentido de que isso seja feito com moderação a fim de que a amizade não seja desvirtuada. Na segunda parte do provérbio, o sábio deixa claro que uma amizade sem moderação representa um perigo sério para o exercício dessa forma de amor. A falta de moderação pode transformar um relacionamento marcado pela afeição e pela empatia em motivo de aborrecimento e rejeição, violando assim a essência da verdadeira amizade. Dito de outro modo, uma amizade marcada pela intemperança e pelo desequilíbrio não demorará muito tempo para converter-se em inimizade. Não sem razão os antigos gregos afirmavam que “o amigo de hoje do intemperante será o seu inimigo de amanhã”[10]. Com isso pode ser percebido que a falta de moderação afeta um outro princípio fundamental da amizade: a constância.

Além disso, a amizade é “uma relação entre mentes livres”[11], para citar mais uma vez as palavras de C. S. Lewis. Não obstante, quando não há moderação, a liberdade, um dos traços mais distintivos da amizade, é completamente violada. O eros é um tipo de amor que possui a exclusividade em sua essência, fato que não ocorre em relação à amizade. “Razão porque os amantes são representados frente a frente, mas os amigos lado a lado”[12]. Aquele que já tem um amigo fica ainda mais feliz em estabelecer novas amizades. O fato é que se A e B resolverem estabelecer uma amizade, A precisa está ciente de que B poderá ter inúmeros outros amigos e vice-versa. Cada um deve saber que não é o único amigo do outro e ambos precisam de tempo para dedicar aos outros amigos e de tempo para dedicar a si mesmo. Nenhum amigo tem o direito de reivindicar dedicação exclusiva do outro. Se isso acontecer, essa relação pode receber qualquer outro nome, menos amizade. A exclusividade não é própria dessa forma de amor. A partir do momento em que um amigo se torna refém do outro, o seu relacionamento está ameaçado. Esse princípio parece bastante elementar e repetitivo. Contudo, ele sempre é violado pela intemperança que frequentemente afeta o relacionamento entre amigos.

Quando a falta de moderação atinge um relacionamento entre amigos, a tendência é que se desenvolva entre ambos um espírito de possessividade, ciúme e dependência, fato que viola o caráter autônomo da amizade. Nesse ponto, temos que concordar com C. S. Lewis quando defende que nada é tão contrário à amizade como o ciúme.

A essa altura, não seria o caso de indagarmos a respeito daqueles pobres cristãos sinceros que por duas vezes já tiveram que reduzir a sua lista de amigos? Se agora eles avaliassem os amigos que restaram, não se veriam obrigados a fazer uma terceira redução? Mas esses pobres cristãos, em sua sinceridade, querem fazer amigos verdadeiros. Contudo, eles estão ficando cada vez mais angustiados, pois sua lista tem sofrido reduções drásticas. O que eles deverão fazer? Se desejam aumentar a lista de amigos, eles precisarão libertar alguns reféns, e, quanto menos reféns eles tiverem, maior será a sua lista de amigos. A libertação é necessária, ainda que a cela fique completamente vazia e todos os reféns ganhem a sua liberdade para depois se tornarem verdadeiros amigos. Por fim, cabe acrescentar que a cela deverá ser queimada com fogo inextinguível, a fim de que os amigos nunca mais possam se sentir presos.

Notas:

1. Provérbios 25:17.

2. PLATÃO. Fedro, Cartas, O primeiro Alcibíades. In: Diálogos Vol. V. Belém: EDUFPA, 1975. p. 139.

3. MARCO AURÉLIO. Meditações. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 281.

4. HORÁCIO apud MONTAGNE, Michel de. Ensaios. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 101.

5. LLULL, Ramon. O livro dos mil provérbios. Disponível em <www.ricardocosta.com/grupos/proverbi.htm> (Acessado em 10 de maio de 2008). Não paginado.

6. EPICURO. Antologia de textos. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 30.

7. DEMÓCRITO. Pré-socráticos I. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 134.

8. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2001. passim.

9. Eclesiastes 7:16.

10. Ad. Tempora.

11. LEWIS, C. S. Os quatro amores. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 82. 100.

12. LEWIS, C. S. op. cit. p. 94.



Postado por J. Marques


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