sexta-feira, 3 de outubro de 2008

DISCURSO SOBRE A AMIZADE I: DO PRINCÍPIO DA CONSTÂNCIA[1]


“Em todo tempo ama o amigo e na angústia se faz o irmão”[2], afirma o sábio em um dos seus provérbios, ressaltando a importância do princípio da constância para a amizade. A passagem não é uma ordenança para que alguém ame seu amigo, mas uma constatação de que o amigo ama em todo tempo. Em outras palavras, o texto deixa claro que é a constância que caracteriza a verdadeira amizade. Os que são verdadeiramente amigos se comprazem com a perpetuação desse laço que os une. A amizade possui dentro de si o impulso para a durabilidade. Sendo assim, o tempo não representa um problema para ela. Pelo contrário, ele serve para fortalecer e trazer maturidade ao relacionamento. C. S. Lewis tem razão ao afirmar que a amizade é o mais humano dos amores. Entretanto, ele deixou de notar o seu caráter paradoxal. Ao mesmo tempo em que conserva uma vívida dimensão humana, ela também é dotada de um caráter divino. Estranhamente, ela pode ser definida como mais humano e o mais divino dos amores. Por conta desse segundo distintivo, de todos, ela é o que possui maior propensão para a durabilidade. Em outras palavras, a amizade é a forma de amor que mais se relaciona com o princípio da constância. A Afeição, dado o seu caráter simples, é tendencioso a desaparecer diante de amores mais complexos, o Eros está ligado ao apetite sexual, de natureza bastante instável. Além disso, ele não terá lugar na nova criação, fato que pode ser notado em relação à Caridade. Para que a caridade exista é necessário que existam pessoas carentes, algo inconcebível em um mundo renovado e habitado por seres perfeitos.

A relação entre a constância e amizade justifica-se pela própria origem dessa última. Ela é o mais primordial de todos os amores. De fato, não seria exagero afirmar que era um misto de amizade e comunhão que marcava o relacionamento entre as pessoas da Trindade na eternidade. Antes de Deus criar o mundo, essa era a única forma de amor que existia. O amor entre as pessoas da Trindade não poderia ser a Afeição porque essa forma de amor é comumente dispensada a um objeto inferior. Além disso, quem o dispensa, dispensa-o em uma medida inferior aquela que dedica a si mesmo, algo inconcebível para Deus. Também não poderia ser o Eros, uma vez que seria absurdo que Deus fosse dotado de apetite sexual. Além disso, excetuando a encarnação de Cristo, as pessoas da Trindade não possuem corpos materiais. Por fim, esse amor não poderia ser a Caridade, já que este exige um objeto carente, e seria igualmente absurdo que um Deus onipotente tivesse carência de qualquer coisa. Assim, nutrir uma amizade sincera por alguém significa nutrir o mais primordial de todos os amores, o amor que esteve em Deus desde a eternidade, significa se afetado pela única forma de amor que possui uma centelha do infinito dentro de si. Isto não significa que a amizade entre os homens não esteja sujeita aos maiores revezes e conflitos. Deve sempre ser lembrado que é só em um ser infinito que a constância se transforma em imutabilidade. Além disso, são homens imperfeitos vivendo em um mundo marcado pelo pecado que vivenciam esse tipo de amor. Nesse ponto, o conselho deixado por C. S. Lewis é salutar. Nas suas palavras, “a amizade é até mesmo angélica, por assim dizer. Mas o homem precisa estar triplamente protegido pela humildade para comer o pão dos anjos sem risco”[3]. É justamente por ser uma das formas mais elevadas de amor que a amizade possui exigências mais rigorosas. Exigências que só podem ser cumpridas em sua plenitude em um mundo de seres perfeitos. O que não significa que a amizade não deva ser buscada a cada instante neste mundo imperfeito.

O princípio da constância apresentado no provérbio de Salomão nos mostra que a verdadeira amizade resiste ao tempo. Mas também é claro no texto que ela resiste à adversidade. A expressão “na angústia se faz o irmão” parece confirmar esse fato. Novamente, a adversidade não destrói as verdadeiras amizades. Na verdade, o texto deixa explícito que ela serve para fortalecer e intensificar o laço entre amigos. O amigo que participa dos momentos de angústia de outrem se torna mais e mais familiar. É na adversidade que as amizades têm a sua veracidade comprovada. Esse é um ensinamento social antiqüíssimo. “É a tempestade que comprova a resistência dos barcos”, diziam os antigos gregos para se referir à amizade. Um outro adágio de natureza incerta, repetido por Cícero em seu Diálogo, afirmava que “não é possível dizer que duas pessoas são amigas, sem que antes elas tenham comido muitos alqueires de sal”[4].

A importância que os escritores antigos deram à constância na amizade pode ser vista nas inúmeras críticas tecidas aos falsos amigos. Teognis, por exemplo, afirmou que poucos são os amigos que estão dispostos a enfrentar situação de perigo por seu companheiro, e que tenham animo para tomar parte tanto dos seus bens quanto dos seus males[5]. Demócrito acrescenta que, “na fortuna, é fácil encontrar um amigo, mas no infortúnio é a coisa mais difícil”[6]. Epiteto emprega a metáfora de dois cães para criticar a falta de constância nas amizades. Segundo ele, dois cães parecem os melhores amigos do mundo, até que um osso é lançado no meio deles. Assim, é a amizade entre muitas pessoas. Demonstram ser amigas, mas quando surge qualquer motivo de disputa entre elas, transformam-se nos maiores inimigos. “Um pouco de ouro serve para mostrar como é frágil a amizade de alguns”[7], afirma Cícero em seu Diálogo. No livro de Provérbios, a crítica em relação às amizades inconstantes também está presente. Segundo as palavras do sábio, “as riquezas multiplicam os amigos, mas, ao pobre, o seu próprio amigo o deixa”[8]. Embora as críticas sejam diversas, o seu objetivo é apenas um: mostrar a importância do princípio da constância no relacionamento entre amigos.

O sofrimento de um dos amigos torna amizade mais sensível. Não há dúvida que os momentos de alegria servem para estabelecer vínculos de amizade, mas é nos momentos turbulentos que esses laços são postos à prova e fortalecidos. A dor aproxima os amigos. A razão disso é bastante simples. Como a amizade caracteriza-se por uma identificação, os amigos vêem no sofrimento de outrem o seu próprio sofrimento. Como Cícero costumava afirmar, “o verdadeiro amigo vê o outro como uma imagem de si mesmo”[9]. Quando a amizade é sincera, a dor de um amigo sempre afeta seu companheiro. É por esta razão que os verdadeiros amigos, diante da adversidade e do sofrimento, sempre demonstram prontidão para aliviar a dor do seu companheiro. Eles sabem que aliviar a dor do outro, de alguma forma, significa aliviar a sua própria. Mas esse princípio possui uma outra implicação, uma implicação bastante confrontadora. Não é amigo aquele que não sente as fibras nervosas perturbadas, a voz tremular, o peito apertado e a angústia invadindo seu ser diante da adversidade do seu companheiro. Os amigos se encontram um no outro, principalmente no momento da angústia. Certamente, esse princípio tirará o sono de muitos cristãos sinceros. É possível que muitos tenham que reduzir pela metade a sua lista de amigos. Descobrirão com certa frustração que muitos daqueles que eles consideravam amigos íntimos não passam de meros conhecidos, para empregar o sentido coloquial do termo. Assim, o sofrimento funciona como uma espécie de prova para a amizade. Deixar o amigo sozinho na dor é um sinal claro de reprovação. Mas é possível estar com o amigo e não estar com sua dor, é possível estar em sua angústia, mas não estar com sua angústia. Esta é uma reprovação não menos criticável que a anterior. Tanto a fuga quanto a simulação atentam contra a constância da amizade, e, por conseguinte, desvirtuam a essência do mais primordial dos amores.

Certamente, alguns poderão dizer que a incapacidade de fazer amigos representa o maior perigo para a amizade. O próprio Demócrito já afirmava que “não merece viver quem não tem um só amigo”[10]. Contudo, essa opinião admite objeção. É possível afirmar que esse não representa o maior perigo para a amizade. De fato, a incapacidade para fazer amigos nem representa um problema para a amizade, uma vez que esta ainda não existe. Para ser mais preciso, ela representa um problema muito mais para a natureza social do homem do que para a amizade em si. Sendo assim, o maior perigo para a amizade não é a incapacidade para fazer amigos, mas a incapacidade de conservá-los. Certamente, o indivíduo que procura isolar-se do convívio social comete uma atitude digna de censura. Todavia, aquele que não é capaz de manter nenhum amigo, comete um ato não menos desprezível. No fundo, é menos censurável não querer usufruir da amizade do que desfrutá-la sem querer levar em consideração os princípios que a regem. Na república da amizade, o bárbaro afastado é menos danoso do que o cidadão rebelde. Para citar novamente Demócrito, “aquele a quem os amigos a toda sorte não perduram, tem temperamento difícil”[11].

Há pessoas que encontram as justificativas mais banais para finalizar uma amizade. Algumas por que descobriram que o amigo traja roupas diferentes, outras porque perceberam que ele não gosta do seu programa favorito. Levados por essas trivialidades, tais pessoas não conseguem manter um relacionamento por mais de uma semana. Alegam problema de temperamento ou dizem que foram vítimas de intrigas. O fato é que elas desconhecem a natureza da verdadeira amizade. Já foi falado que a amizade possui um caráter paradoxal. Ela é, ao mesmo tempo, o mais humano e o mais divino dos amores. Contudo, ela comporta uma outra ambigüidade. Ela é igualmente marcada pela semelhança e pela diferença. Ela comporta a semelhança porque não é possível existir amizade sem uma identificação entre os amigos. Não obstante, em virtude da natureza individual de cada amigo, ela admite igualmente a diferença. A amizade é, portanto, uma relação de identificação que admite a contrariedade. De fato, na amizade verdadeira, até mesmo a contrariedade gera a harmonia. Os que deixam de considerar esse princípio fundamental são aqueles que não estão preocupados em conservar seus amigos e usam estranhos argumentos para justificar sua falta.


Notas:

1. Esse artigo é uma adaptação de uma monografia intitulada Considerações sobre a amizade em Provérbios. Foram selecionados os pontos essenciais desse trabalho, que serão publicados em quatro postagens no blog ARETE5.

2. Pv. 17:17.

3. LEWIS, C. S. Os quatro amores. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 123.

4. CÍCERO. Diálogo sobre a amizade. (Versão para ebook). Disponível em <http://www.ebooksbrasil.com/> (Acessado em 15 de novembro de 2007).

5. TEOGNIS. In: Líricos griegos: elegíacos y yambógrafos. Vol. II. Barcelona: Ediciones Alma Máster S. A., 1956. p. 173.

6. DEMÓCRITO. Pré-socráticos I. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 136.

7. CÍCERO. op. cit. p. 44.

8. Pv. 19:4.

9. CÍCERO. op. cit. p. 21.

10. DEMÓCRITO. op. cit. p. 334.

11. DEMÓCRITO. loc. cit.


Postado por J. Marques

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